Sampapé

Você aí, a pé, está sendo multado!

Ser multado por estar “andando fora da linha” pode se tornar realidade, mas nos afasta da possibilidade de viver em cidades mais humanas

(Foto: Gestão Pública)
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Ray Bradbury, escritor e roteirista de ficção científica americano, previu em seu conto “Pedestre“, escrito em 1951, que o caminhar seria criminalizado. Na história, isso ocorreria mais precisamente no ano de 2053, ou seja, daqui a 34 anos. Nela, Leonard Mead está caminhando pelas ruas quando é parado por um carro policial que quer entender o que ele está fazendo, e fala com o personagem através de uma voz metálica:

“…
‘Apenas caminhando, Sr. Mead?’
‘Sim’
‘Mas você não explicou a razão.’
‘Eu expliquei, para tomar ar, para observar e só por caminhar.’
‘Você faz isso com frequência?’
‘Todas as noites, há vários anos’
O carro policial parou no meio da rua com o rádio fazendo ruídos. ‘Bem, Sr. Mead’, o rádio disse.
‘Isso é tudo?’ perguntou educadamente.
‘Sim,’ disse a voz.
‘Aqui.’ Houve um suspiro, um pop. A porta dos fundos do carro da polícia se abriu. ‘Entre.’
‘Espere aí, eu não fiz nada!’
‘Entre.’
…”

(tradução livre, Budbury, 1951)

No conto, o autor retrata uma cidade “do futuro” onde ninguém mais sai às ruas para caminhar, ato que é criminalizado por ser considerado suspeito e incompreendido.

Na vida real, entretanto, ao contrário do que todas as ficções científicas desta época indicaram e previram – metrópoles com carros voadores e robôs – governos locais, cidadãos e cidadãs em diversos lugares do mundo têm escolhido um caminho diferente: o de transformar as cidades em espaços públicos de convivência.

Mas, quando governos corroboram com a ideia da “desobediência” dos pedestres, ao regulamentar a possibilidade de multar pessoas caminhando fora da estrutura delimitada, estão indo na contramão desta transformação.

Quando culpabilizam o ato primordial da vida urbana, em vez de identificar que as cidades precisam se adaptar para serem lugares seguros e atrativos para caminhar, acabam por nos aproximar do ambiente inóspito da ficção de Bradbury, enquanto nos afastam do horizonte de construir cidades para pessoas.

Tendência: cidades humanas

Por um lado, estamos caminhando para centros urbanos orientados para a convivência nos espaços públicos. Em estudo da universidade britânica UCL (University College London) chamado “Mobilidade Urbana: preparando-se para o futuro, aprendendo do passado”, foram identificados três momentos diferentes das políticas públicas nas cidades que aconteceram e acontecem sequencialmente: a cidade orientada para carros, a cidade da mobilidade sustentável e a cidade orientada para os espaços públicos e a convivência.

Aponta-se que justamente as consequências do modelo anterior e o conhecimento de novos dados levam à sua superação e à busca por outro modelo urbano. E que, ainda que estruturas dos três momentos convivam nas cidades, as políticas públicas buscam refletir os anseios contemporâneos.

Leia também: Ganhando e produzindo espaço nas cidades através do caminhar

Este é o caso da Política Nacional de Mobilidade Urbana, lei brasileira de 2012, que deixa claro que as cidades devem fazer planos de mobilidade urbana municipais que garantam a prioridade dos modos ativos, deslocamento a pé e por bicicleta, sobre os outros modos de deslocamento.

Em São Paulo, por exemplo, um dos reflexos desta lei em políticas públicas recentes que visam estimular e dar mais qualidade ao uso dos espaços públicos foi a formalização do programa de Ruas Abertas e da Paulista Aberta.

Analisando a estrutura da avenida Paulista, pode-se dizer que, ainda que reflita uma mistura do momento das cidades para carros (tem três pistas de cada lado para automóveis individuais) e do momento da cidade da mobilidade sustentável (conta com corredor de ônibus, metrô, ciclovia e calçadas amplas), é a partir da criação da política da Paulista Aberta que a via entra no terceiro momento – da cidade orientada para os espaços públicos e a convivência.

Tal programa começa a refletir os anseios contemporâneos da população de estar no espaço público e ter cidades mais caminháveis – vale lembrar que a abertura da Paulista aos domingos foi uma demanda da sociedade civil, que o SampaPé! mobilizou junto a outras organizações e coletivos.

Caminhar nas cidades brasileiras

Por outro lado, o caminhar continua sendo o meio de transporte mais negligenciado pelas políticas públicas – ainda que seja o mais saudável, sustentável e sociável.

Em 2019, no Brasil, felizmente o cenário do deslocamento a pé é bastante diferente da cidade do Leonard Mead (personagem do conto de Bradbury). Caminhar é o transporte mais utilizado nas cidades brasileiras – 41% das viagens diárias são realizadas exclusivamente a pé (Simob, 2016). Mas esta grandeza em número de caminhantes não se reflete na qualidade.

Mesmo sendo maioria nos deslocamentos, pedestres são minoria em termos de direitos. Falta muita estrutura para caminhar e os espaços das ruas, especialmente em grandes cidades, são muito mais dos carros do que das pessoas.

Na cidade de São Paulo, por exemplo, um levantamento da Prefeitura aponta que 80% do espaço das ruas é dedicado aos carros. Sendo os outros 20% ainda dividido entre os outros modos de deslocamento.

Leia também: O que o Ministério das Cidades tem a ver com a Mobilidade Ativa?

Quem caminha pelas ruas brasileiras sabe que falta valorização e sobram riscos. São calçadas esburacadas, quilômetros sem faixas de pedestres, vias expressas, obstáculos, quadras muito extensas e os semáforos, quando existem, forçam as pessoas a atravessar as ruas correndo. Além disso, os motoristas são pouquíssimo fiscalizados em relação ao respeito aos deslocamentos a pé.

E essa combinação de fatores tem um resultado desastroso – todos os dias cerca de 270 pessoas sofrem quedas nas calçadas e em média 9 pessoas são atropeladas, somente na capital paulista (considerando estudos de ortopedia da Dra. Júlia Greve, da FMUSP, e os dados de atropelamento de 2016 e 2017 do Relatório Anual de Acidentes de Trânsito da CET).

Isso significa que milhares de pessoas têm suas vidas totalmente alteradas, ou mesmo ceifadas, enquanto tentam se deslocar a pé, como resultado da combinação da negligência dos governos em relação à infraestrutura, modelo de cidades que priorizou motorizados e falta de fiscalização da imprudência de motoristas.

A multa

Aparentemente ignorando a realidade desastrosa de quem se desloca a pé e de bicicleta pelas cidades brasileiras e os anseios por cidades para as pessoas, o Contran aprovou, no ano passado, uma resolução que regulamenta artigo do Código de Trânsito Brasileiro, com vistas a implementar a multa para pedestres e ciclistas que “infringirem as regras de trânsito”. Entre as ações passíveis de multa, estão atravessar fora da faixa de pedestres e ficar no meio da rua.

A resolução havia sido adiada por um ano, sob a justificativa de que os municípios – responsáveis por aplicar multas de trânsito – precisavam de tempo para se adequar tecnicamente à nova demanda.

Mas ela pode entrar em vigor em dois meses, segundo o Contran. O debate sobre as dificuldades técnicas, no entanto, oculta a perversidade contida no mérito da questão.

Por um lado, ao se organizar para multar pedestres e ciclistas, o Denatran mostra não se importar com o fato de que as infrações de motoristas que colocam pessoas a pé em risco  (como desrespeitar a preferência na faixa de pedestres) são praticamente ignoradas pelos órgãos de trânsito país afora.

Um levantamento publicado no site Painel da Mobilidade Ativa mostra que, nos últimos 4 anos, quase não se fiscalizou esse tema: “Embora 33% dos deslocamentos de São Paulo sejam feitos exclusivamente a pé, apenas 0,8% das autuações feitas por agentes nas ruas se relacionam aos 10 enquadramentos de ‘deixar de dar preferência a pedestres e ciclistas’ – isso equivale a 0,2% do total, se considerarmos fiscalização eletrônica”.

Ou seja, os órgãos de trânsito não são cobrados para fazer valer o Código de Trânsito Brasileiro para proteger a vida de pedestres e ciclistas.

E aí fica evidente outra faceta problemática das multas a pedestres e ciclistas – a ideia de penalizar quem “anda fora da linha” em cidades que estão distantes de contemplarem e garantirem deslocamentos a pé em segurança.

Exigir o “estrito cumprimento da lei” por parte dos pedestres e ciclistas não faz sentido em uma realidade na qual a maioria esmagadora das cidades brasileiras não cumprem as condições básicas de acessibilidade, como seria a obrigação legal.

Como exigir que andemos na calçada, quando elas são completamente irregulares ou inexistentes? Como exigir que se atravesse na faixa quando não há rampas de acesso ou a faixa mais próxima é muito distante?

A ideia de multar pessoas a pé e de bicicleta é um política pública relacionada ao modelo de cidades centrada nos carros. Modelo que já vem sendo superado desde os anos 70, com a criação do BRT em Curitiba, do Metrô em São Paulo e dos calçadões nos centros de ambas cidades.

Ideário que aumentou sua expressividade mais recentemente através de novas políticas, como a política cicloviária de Fortaleza e da implementação de ruas acalmadas e compartilhadas de Salvador.

Multar quem está, apesar de todas as condições adversas, se deslocando do modo que traz mais benefícios coletivos é uma forma de criminalização da cidadania. Trata-se de uma estupidez que tira o direito das pessoas à cidade e as afasta ainda mais do ir e vir em segurança e com qualidade. Afastando-nos, assim, de cidades centradas na convivência.

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