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5 dicas para reduzir – ou acabar – com as mortes de pedestres

Novas perspectivas para entender como ações da Visão Zero e de caminhabilidade podem solucionar o problema da falta de segurança viária

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No mundo, milhares de pessoas morrem precocemente enquanto tentam simplesmente se deslocar. Morrer para chegar a algum lugar, acessar algum serviço ou estar na cidade não é normal e nem aceitável, mas é mais comum do que se imagina. Não por acaso, 93% dessas mortes acontecem em países em desenvolvimento, segundo a OMS. Em São Paulo, por exemplo, só em 2018 ao menos 2 pessoas morreram todos os dias se deslocando na cidade no ano passado (849 pessoas, no total) – segundo dados do Relatório de Acidentes de Trânsito da CET de 2018.

As mortes são consequências drásticas de modelos de cidade que não contemplam as pessoas. Já mencionamos em textos anteriores sobre a matança gerada por poluição do ar, doenças cardiovasculares e respiratórias e incidentes viários. Além disso, recentes estudos apontam que solidão e depressão geradas pelas cidades também estão matando as pessoas. Dentre todas as causas de mortes precoces geradas pelas cidades, provavelmente as mais fáceis de solucionar, e que depende basicamente de planejamento e decisões governamentais rápidas e consistentes, são as mortes por ocorrências viárias. Justamente por isso, elas são classificadas internacionalmente como “evitáveis” e a OMS definiu o período de 2011 a 2020 como a Década de Ação na Segurança no Trânsito. O Brasil, entretanto, conseguiu reduzir apenas 16% das mortes no trânsito nesse período, muito distante da meta de reduzir pela metade.

O que é Visão Zero?

Foi a partir da constatação deste cenário de mortes evitáveis que nasceu, na Suécia, o conceito da Visão Zero, que coloca as pessoas como prioridade no combate à mortandade no trânsito, buscando atingir ao objetivo de zerá-la. Sua principal premissa é que não se pode apostar que os usuários do trânsito não devem errar, porque são seres humanos e falham. Assim sendo, é necessário reduzir ao máximo os fatores de risco que fazem com que uma falha humana leve a colisões, atropelamentos ou mortes. Isso significa investir pesadamente em mudar a infraestrutura de mobilidade, transformando o desenho das ruas, forçando a redução de velocidades e o compartilhamento.

Em Lisboa, o plano se chama Missão Zero. Segundo Pedro Homem de Gouveia, urbanista português que coordena o plano de ação da cidade, escolher a forma certa de comunicar uma política pública que carrega consigo mudanças de paradigma, importa muito. O governo lisboeta, então, escolheu trocar “Visão” por “Missão”, por acreditar que o termo engaja mais a população. Outras cidades que fizeram seus planos de ação foram Nova York, Londres e Hong Kong, enquanto cidades latinas como Buenos Aires, Bogotá e Fortaleza implantam projetos baseados no conceito.

Caminhabilidade

Outro conceito que complementa a busca por cidades sem mortes no ir e vir é a caminhabilidade. Caminhabilidade, do inglês walkability, é a qualidade do espaço urbano para se deslocar a pé, considerando o quão agradável e seguro é ou não para as pessoas. Por se centralizar na experiência das pessoas com relação ao ambiente existem diversas formas de avaliá-la, mas em todas o sentimento de ameaça pela estrutura viária indica um ambiente não caminhável.

Quando uma cidade, bairro ou rua se estrutura pensando no caminhar, as pessoas, considerando toda sua diversidade de características e atividades – crianças, idosos, mulheres, pessoas com deficiência, seja com carrinho de compras, apressada ou desfrutando – estão no centro do planejamento do espaço e da oferta de infraestrutura. E em um lugar caminhável, atropelamentos não têm vez.

Várias cidades do mundo também fazem avaliações e planos neste sentido. Ljubljana, capital da Eslovênia, é uma das cidades que vem se destacando neste sentido, com pedestrianização do centro e medidas de priorização e estímulo ao caminhar nos subúrbios. Londres está usando a abordagem de Ruas Saudáveis (Healthy Streets) para transformar suas ruas, na qual o primeiro indicador é “ser convidativa para todas as pessoas caminharem, estarem e se engajarem na convivência em comunidade”. Enquanto em cidades mexicanas ações como substituir passarelas de pedestres (intituladas por organizações do país como “puentes anti-peatonales”) por faixas de pedestres na via estão despontando.

As ações empreendidas a partir do paradigma Visão Zero e de caminhabilidade podem parecer distantes para países em desenvolvimento, onde as cidades contam com muita desigualdade espacial e deficiências na infraestrutura. No entanto, as lições das experiências já existentes ajudam a entender quais erros não deveríamos repetir em países de urbanização mais recente. Abaixo elencamos cinco perspectivas para sair do senso comum e refletir sobre como o modelo urbano precisa mudar para alcançarmos cidades mais humanas e que prezam a vida:

1) Soluções de segurança viária nas cidades são soluções de mobilidade urbana

Nas cidades, as mortes viárias atacam principalmente os mais “vulneráveis”. Um estudo do Fórum Internacional de Transportes da OCDE realizado em 31 cidades do mundo mostrou que enquanto a nível nacional, ou seja, incluindo estradas, o número de vítimas fatais vulneráveis (a pé, de bicicleta e de motocicleta) representa 43%, nas cidades este número sobe para 78%.

Isso acontece pois é justamente no ambiente urbano onde o deslocamento ativo é mais expressivo e deveria ser priorizado. Além disso, nas cidades o uso excessivo de motocicletas é uma consequência da saturação de estruturas voltadas para o transporte motorizado individual. Neste sentido, enquanto algumas soluções para a segurança nas estradas voltam-se para evitar colisão entre automóveis, como construção de barreiras físicas entre vias de mão opostas e tartarugas de redução de velocidade e alerta, nas cidades as ações devem focar na mobilidade, nas pessoas e na condição dos deslocamentos.

 No Brasil, por exemplo, antes mesmo da Política Nacional de Mobilidade Urbana (2014), o transporte a pé e de bicicleta já tinham prioridade garantida pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O artigo 124 versa sobre as gravidade das infrações quando deixa-se de “dar preferência de passagem a pedestre e a veículo não motorizado” nas travessias; que esteja atravessando a via transversalmente mesmo sem faixa; crianças, idosos, gestantes e pessoas com deficiência física; e ainda que estejam completando a travessia, mesmo que o semáforo esteja verde para os veículos motorizados. Porém, a infraestrutura urbana não acompanhou nem garante esta priorização definida por lei. Pessoas a pé ou de bicicleta, portanto, não são vítimas fatais no trânsito por “falta de civismo”, como o senso comum costuma pensar e apontar. Mas sim por falta de estrutura que garanta a segurança em seus deslocamentos e presença na cidade pensando na mobilidade urbana e não nos meios de transporte.

Em Lisboa, por exemplo, foi constatado que o maior número de atropelamentos acontece nas faixas de pedestres. O que mostra que, mesmo quando estão “cumprindo as regras”, as pessoas a pé continuam muito fragilizadas. Assim, para garantir segurança viária no ambiente urbano é preciso esquecer a soluções para estradas e focar nas pessoas a pé e de bicicleta e considerar suas características diversas para gerar ambientes e sistemas seguros.

2) Não há contato visual nem negociação do espaço em alta velocidade

Velocidades altas são fatais. Segundo dados do Observatório de Segurança Viária da Espanha, atropelamentos a 30 km/h resultam em 30% dos atropelados ilesos, 5% mortos e 65% feridos. Enquanto em atropelamentos a 50 km/h, somente 5% saem ilesos, 45% morrem e 55% ficam feridos. E a partir dessa velocidade a fatalidade aumenta exponencialmente, tendo a 65 km/h, nenhum ileso, 85% mortos e 15% feridos e a 80 km/h ou mais, praticamente 100% dos atropelados mortos.

Mas o problema da velocidade alta é anterior à fatalidade, ela elimina possibilidade de negociação do espaço e aumentar os riscos de atropelamentos. Uma das perspectivas importantes compartilhada por Pedro Gouveia é que velocidades altas diminuem o campo de visão dos motoristas.

Velocidades altas geram mais atropelamentos porque dificultam a quem dirige ver para além do ponto central na pista imediatamente à sua frente. Dessa forma, qualquer pessoa que comece a atravessar uma rua quando alguém está dirigindo por ela a 60 km/h pode parecer estar “pulando na frente” do automóvel. As altas velocidades igualmente dificulta que pessoas a pé consigam ver os automóveis ou fazer contato visual com quem está dirigindo para negociar o espaço. Neste sentido, Pedro pontuou que crianças e idosos a pé têm dificuldade em identificar a velocidade exercida por veículos e por isso têm menos chances de “calcular o risco” de uma travessia ao ver um veículo em alta velocidade se aproximando. Quando se preza por uma cidade sem atropelamentos ver e/ou ser visto é crucial. Assim, diminuir as velocidades também é uma questão de visão, negociação e convivência urbana.

3) É preciso “dificultar” o trânsito de veículos motorizados

Ainda que a autoridade pública identifique a necessidade de reduzir as velocidades, não basta sinalizar limites menores e manter a mesma estrutura das ruas, com faixas de circulação largas, asfalto liso e curvas amplas. Condições cômodas demais para os motoristas fazem com que eles se sintam à vontade para acelerar e não prestar atenção nas pessoas que estão fora de seus veículos, circulando e dividindo o espaço das ruas.

Por esse motivo, a rua precisa representar um “desafio” e promover a constante negociação, principalmente entre os usuários de automóvel e veículos motorizados. Pedro Gouveia explica que o cérebro humano vê a sinalização de trânsito (seja ela de velocidade, de regramentos) e reage a partir das possíveis consequências. Por outro lado, quando alguém vê uma lombada, uma faixa elevada ou uma via mais estreita, seu cérebro dá o recado de que deve desacelerar para não causar dano ao carro, que é interpretada pelo órgão como uma “extensão” do corpo, o mesmo que acontece quando se opera ferramentas. Ou seja, frear diante de uma estrutura que induz à redução da velocidade independe da ética do motorista.

Neste sentido, ao contrário do que pressupõe o senso comum, no ambiente urbano pistas largas são mais inseguras do que pistas estreitas, e vias de mão dupla são mais seguras que de sentido único, pois ambas situações ampliam a atenção de quem está conduzindo veículos motorizados. Assim, é preciso gerar ruas com mais “conflitos” para os veículos motorizados e menos para quem está de deslocando ativamente.

4) Quando não há motor, não há atropelamentos

As ruas têm mais funções do que apenas de passagem, elas são o principal espaço público das cidades. Pedestrianizar ruas é, portanto, também uma forma de garantir prioridade às diversas pessoas a pé.

Várias cidades do mundo atentas a isso têm iniciativas diversas de destinar ruas para as pessoas, ainda que temporariamente. Em algumas cidades da Europa acontece a “rua escolar”, na qual a entrada de veículos motorizados é bloqueada nas ruas das escolas no horário de entrada e saída das aulas. Tal iniciativa começou em Bolzano, na Itália, e reduziu cerca de 50% os incidentes viários. O programa Ruas de Lazer, em São Paulo, também faz abertura de ruas para as pessoas temporárias para permitir que as crianças brinquem nas ruas e sejam mais ativas aos finais de semana. Pontevedra, na Espanha, iniciou nos anos de 2000 a restrição a carros na zona central e foi expandindo para bairros mais periféricos. Como resultado, o uso de carros caiu em 77% e a população de crianças de até 14 anos aumentou 8%, o dobro do restante do país.

Logo, aumentar calçadas, promover ruas abertas, construir calçadões, entre outras iniciativas que deixam as pessoas livres da tensão do conflitos com veículos motorizado, seja em trechos e/ou horários, além de gerar diversos benefícios sociais e ambientais, promove mais segurança e diminui atropelamentos.

5) Comportamentos “inadequados” denunciam estruturas inadequadas

É comum que os debates sobre segurança viária enveredem para o julgamento sobre a “falta de educação” das pessoas. Quando vidas são perdidas no trânsito, no entanto, não deveria interessar ao poder público decidir quem estava certo, e sim investigar o que pode ser alterado na estrutura para aquela ocorrência não se repetir tendo em mente as prioridades e vulnerabilidades.

O ambiente das cidades centradas nos veículos exige das pessoas transitando comportamentos que são incompatíveis com o que conseguem fazer. Sejam as avenidas que são muito convidativas a motoristas acelerarem ao mesmo tempo que têm limites baixos de velocidades ou os tempos de travessia que forçam as pessoas a atravessar as ruas correndo, mesmo que tenham mobilidade reduzida. Além de faixas de pedestres colocadas fora da linha de desejo ou passarelas que forçam a caminhar mais do que o planejado ou, até mesmo, possível.

Um caso clássico de tentar moldar o movimento e “educar” as pessoas a pé, em vez de contemplá-las, são os gradis nas esquinas das ruas visando evitar a travessia. Essa medida favorece o fluxo de veículos motorizados em detrimento dos movimentos das pessoas a pé e gera mais riscos aos deslocamentos dos mais vulneráveis, que pelo contrário, deveriam ser priorizadas. Nestas situações, a imprudência é de quem planeja. Basta observar o comportamento das pessoas a pé para identificar que a estrutura é inadequada. É preciso superar essas discrepâncias corrigindo a estrutura das ruas, e não as pessoas. Só assim poderemos alcançar cidades nas quais a vida das pessoas está no centro e mortes precoces pela estrutura urbana são verdadeiramente inaceitáveis.

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