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PL das fake news: desafio da Câmara é manter avanços e resolver riscos

Para superar resistência bolsonarista, deputados precisam tirar do PL medidas que violam direitos fundamentais

Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados
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Por Bia Barbosa*

A Câmara dos Deputados iniciou esta semana uma série de ao menos dez debates virtuais para discutir temas que giram em torno do chamado “PL das fake news”. Depois de uma tramitação acelerada e com baixo grau de interlocução com a sociedade no Senado, o texto chegou à Câmara cercado de polêmica. Compreendendo a importância de tentar formar uma maioria ao menos mais ampla da que o projeto teve no Senado – onde passou por 44 votos contra 32 –, a ponto de derrotar a resistência bolsonarista e da base do governo ao texto, o presidente Rodrigo Maia colocou para funcionar um grupo “informal” de deputados e deputadas. São eles que têm agora a tarefa de costurar este processo na Casa.

O primeiro seminário, que procurou responder às questões “O Brasil precisa de uma lei para combater a desinformação? O que regular? Como regular?”, foi chamado em conjunto pelas Secretarias de Comunicação e de Participação, Interação e Mídias Digitais da Câmara, e pelas Frentes Parlamentares Mistas da Economia e Cidadania Digital e em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos com Participação Popular. Apesar das diferentes leituras colocadas na discussão, a maior parte dos participantes apontou, sim, para a importância de uma lei que traga maiores ferramentas ao Estado brasileiro para enfrentar este fenômeno. O texto em tramitação, entretanto, está longe de ser consensual.

Proposto para instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, o PL 2630/20 partiu de abordagens equivocadas e deu boas derrapadas durante a discussão no Senado. Uma das propostas originais e que, felizmente, acabou sendo retirada do texto, foi a definição do conceito de “desinformação” e a obrigação de sua interpretação pelas redes sociais e serviços de mensageria. Como reafirmaram, em recente posicionamento sobre a iniciativa, os relatores da ONU e da OEA para a liberdade de expressão, a experiência internacional tem mostrado que, nos países onde o enfrentamento às chamadas “fake news” foi regulado a partir dessa equação, os casos de censura privada por parte das plataformas e também de autocensura por parte de jornalistas, ativistas e cidadãos em geral se multiplicaram. Daí a opção acertada, da versão que foi a voto no Senado, em focar o combate à desinformação em comportamentos e características de contas e perfis, e não no conteúdo que propagam.

Outro aspecto que chegou a figurar em uma das versões do relatório do senador Ângelo Coronel (PSD/BA), mas saiu do texto, é o enfoque criminal, com a propositura de novos tipos penais para quem dissemina desinformação. O relator declarou uma opção por tratar do tema em um projeto à parte, que pode ser resultado da própria CPMI das Fake News, presidida por Coronel. Objeto de forte reação de dezenas de organizações de direitos humanos que atuam com o tema da justiça criminal, alertando para os riscos de se atingir o usuário comum de Internet a partir da tipificação de condutas genéricas e recorrentes nas redes, a medida pode voltar à baila.

Durante a abertura do ciclo de debates sobre o tema na Câmara, nesta segunda (13), a deputada Joice Hasselmann (PSL/SP), defendeu uma legislação que puna o que extrapola a injúria, a calúnia e a difamação e que combata o financiamento dessas práticas. “Fake news no Brasil dá dinheiro. São canais que estão ganhando muito dinheiro, pessoas que estão ganhando milhares de dólares, porque tem monetização. Temos que seguir este rastro do dinheiro. Não podemos, como legisladores, permitir que o crime compense”, defendeu.

Avanços trazidos no Senado

Na avaliação da Coalizão Direitos na Rede, que reúne cerca de 40 organizações acadêmicas e da sociedade civil que atuam sobre temas da Internet, há aspectos positivos no texto que saiu do Senado e que devem ser mantidos. O principal deles tem a ver com obrigações de transparência por parte das redes sociais e serviços de mensageria privada.

O PL estabelece que as plataformas devem divulgar relatórios trimestrais com informações como o número total de medidas de moderação de contas adotadas, especificando suas motivações, e o total de contas automatizadas e de redes de distribuição artificial detectadas. Apesar das plataformas já divulgarem relatórios de transparência, isso ocorre em intervalos muito superiores, não trazem dados específicos sobre o Brasil e, tampouco, permitem uma análise sobre as medidas que as empresas digitais têm adotado no enfrentamento à desinformação.

O Senado também estabeleceu positivas obrigações de transparência em relação a anúncios e a conteúdos impulsionados nas redes, entendendo que muita desinformação que circula na Internet alcança um número significativo de usuários porque conta com altos volumes de recursos fomentando sua distribuição.

O mesmo vale para todo o capítulo relacionado à atuação do poder público, que estabelece, por exemplo, que as contas de redes sociais utilizadas por entidades e órgãos da Administração Pública e também por agentes políticos estejam submetidas ao interesse público. Tais contas não poderão, por exemplo, restringir o acesso de qualquer cidadão às suas publicações. O poder público deverá ainda divulgar dados sobre a contratação de publicidade ou impulsionamento e coibir a destinação de publicidade para sítios eletrônicos e contas que promovam atos de incitação à violência contra pessoas ou grupos.

Riscos que permanecem no PL

Apesar dos avanços, há diversos problemas que seguem no PL 2630, boa parte deles já levantados no primeiro dia de debates na Câmara. Um dos mais polêmicos diz respeito à rastreabilidade das cadeias de encaminhamento em serviços de mensageria como o Whatsapp. Na avaliação da jornalista Renata Mielli, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, que falou no debate virtual desta segunda-feira, tal previsão sujeita o conjunto da população a alto risco diante de possíveis requerimentos abusivos de informações pessoais, medidas de mau uso de seus dados pelas empresas e vazamentos.

Todas as mensagens que circularem mais nos aplicativos de mensagens serão consideradas suspeitas a priori e rastreadas, sem que haja um indício de ilegalidade. “É uma grave violação ao princípio da presunção de inocência e que pode impactar no exercício da liberdade de expressão e comunicação”, afirmou Renata.

 

Em recomendação ao Congresso Nacional publicada no dia 10 de julho, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) se pronunciou dizendo que a elaboração e tramitação de quaisquer iniciativas legislavas relacionadas ao tema das “fake news” observem “a não adoção de medidas que possam acarretar identificação ou rastreabilidade em massa das/os usuárias/os, tornando vulneráveis à vigilância, à criminalização e à autocensura avistas, defensoras/es de direitos humanos e jornalistas e violando o disposto na Constituição Federal, no Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Dados Pessoais sobre os direitos à privacidade, à liberdade de expressão e ao acesso à informação”.

A recomendação do CNDH também reafirmou a importância do respeito ao devido processo em matéria de moderação de conteúdo por parte das redes sociais, incluindo, além da notificação por eventuais postagens removidas, os mecanismos de apelação para que o usuário possa recorrer e contestar eventuais medidas das plataformas digitais. A redação do PL votada pelo Senado incorporou artigos neste sentido, importantes para o exercício da liberdade de expressão. Mas incluiu de última hora, sem diálogo com as organizações preocupadas com o texto, dois parágrafos cujas redações, vagas e confusas, podem trazer riscos.

Um deles trabalha com ideias de “imitação da realidade” e de indução “a erro acerca da identidade de candidato a cargo público”. Outro diz que a decisão do procedimento de moderação deverá assegurar “ao ofendido o direito de resposta na mesma medida e alcance do conteúdo considerado inadequado”. Especialistas alertam que a figura do ofendido não existe no PL, o que traz enorme dificuldade de delimitação, e que o direito de resposta, que é constitucional, deve ser baseado em decisão judicial. Do contrário, tal medida será terceirizada às plataformas, que poderão receber um conjunto de demandas e passarão a ter que analisar mensagens para identificar “conteúdos inadequados”, como diz o texto.

 

Por fim, ainda requer ajuste o trecho do PL que pode levar a um aumento da exclusão digital no cadastramento de usuários de telefones pré-pagos. O texto que saiu do Senado altera a lei que exige a apresentação de documento de identidade ou CPF para o registro do número para determinar entrega dos dois documentos, o que pode prejudicar milhões de brasileiros que não possuem as duas documentações regularizadas. “É um problema não só de desinformação, mas de inclusão digital, de desenvolvimento econômico também. Qual é o projeto do Congresso para a inclusão digital? O acesso ao auxílio emergencial mostra que não incluímos uma fração gigantesca da sociedade para usar a Internet”, disse o pesquisador e cientista social Caio C. V. Machado no debate virtual.

Ou seja, para enfrentar o fenômeno das fábricas de desinformação, o parlamento brasileiro corre o risco, a depender do texto que aprovar, de jogar o bebê fora junto com a água do banho. A Câmara tem até o início de agosto para dar conta dessa complexa equação.

*Bia Barbosa é jornalista, mestre em Políticas Públicas, integra o Intervozes e a Coalizão Direitos na Rede.

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