Justiça

E se em vez de Venezuela, as manchetes tratassem da Cidade de Deus?

Se valores defendidos para Venezuela valessem aqui para Cidade de Deus, polícia não atiraria na população por helicópteros

Fernando Frazão/Agência Brasil
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Imagine você, caro leitor, chegando em casa após um dia cansativo de trabalho, liga a televisão e se depara com a seguinte cena: A câmera enquadra os apresentadores do jornal da TV em tom sério anunciando que as Forças Armadas da Venezuela utilizaram helicópteros de guerra para disparar rajadas de fuzis contra a população de um bairro pobre de Caracas. Outro apresentador lê uma nota na qual Nicolás Maduro justifica os disparos dizendo que muitos criminosos se escondiam na região e que esse é um preço a se pagar por uma Venezuela livre dos dissidentes armados.

Nicolás Maduro anunciou há pouco mais de três meses um pacote anti-crise

A cena corta mais uma vez, agora a tela exibe imagens gravadas por moradores onde é possível ver um helicóptero pairando a região. De dentro dele, luzes e estrondos: São fuzis de guerra sendo disparados, capazes de cuspir cerca de 500 balas por minuto. Ao fundo veem-se mães correndo desesperadas, carregando crianças no colo. Crianças choram. Como o governo é capaz de tamanha atrocidade contra seu povo?

Creio que nesse momento indignação e perplexidade estariam explodindo em seu corpo. Entretanto, e se eu lhe contasse que cenas como essas acontecem quase todos os dias nas favelas do Rio de Janeiro? Qual seria a reação?

Fernando Frazão/Agência Brasil

Pois bem, quem vos escreve é Salvino Oliveira Barbosa, tenho 21 anos, faço faculdade de Gestão Pública na UFRJ e moro na Cidade de Deus. Fiz o ensino médio no Colégio Pedro II e desde cedo tive que cruzar a cidade, tendo assim, conhecido a oportunidade de conhecer os abismos sociais existentes. Tal realidade criou inquietude:

Como, dentro da mesma cidade, poderiam ter regiões com IDH semelhante a cidades europeias e ao mesmo tempo locais com taxas de tuberculose superiores a Serra Leoa?

Assim que entrei para faculdade passei a integrar um pré-vestibular comunitário e fui um dos fundadores do Coletivo Manivela. Enquanto o pré-vestibular busca preparar os jovens da Cidade de Deus para o ingresso no Ensino Superior, o Coletivo busca conectar jovens universitários de diversas áreas para que levem serviços de forma gratuita às favelas.

Porém, todos os dias, acordamos com uma pergunta: Será que hoje terá operação? Como pode uma das principais capitais do mundo ser regida pelo medo?

Espero poder compartilhar aqui com você, um pouco da perspectiva de quem sofre na pele as políticas de segurança adotadas pelo Estado.

No dia 21 de fevereiro a Polícia Civil realizou uma operação na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio de Janeiro, com aeronaves, dessas de guerra. Muitos foram os relatos de pânico e tiros a esmo que perfuraram diversas casas. No final da manhã uma matéria no “jornal O Dia” anunciava: “Até o fim da manhã, nove pessoas haviam sido presas e dois fuzis, uma pistola e drogas apreendidos”.

Há pouco tempo a polícia civil apreendeu cerca de 117 fuzis – equivalente a pouco mais do que 10% de todos os fuzis disponíveis na PMESP – sem disparar nenhum tiro. A maior apreensão de armas na história do Rio de Janeiro não foi em uma favela. A segunda maior apreensão também não foi em uma favela. Cerca de 60 fuzis apreendidos no Aeroporto Galeão e mais uma vez sem nenhum disparo. Embora o combate ao crime na ponta seja necessário, me fica o sentimento de que as incursões nas favelas são semelhantes a por um balde embaixo de uma goteira.

Protesto de moradores da Cidade de Deus contra operação policial. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Veja, o balde na goteira é importante, evita que a água se espalhe e estrague as coisas ao redor. Porém, se não resolvermos a origem da goteira, estaremos eternamente presos nesse ciclo de violência e shows pirotécnicos proporcionados pelas forças de segurança. As armas nas favelas constrangem os moradores, claro, mas não serão soluções simplistas que irão sanar um problema complexo.

Se quisermos de fato romper com o ciclo da violência é necessário muito mais do que uma polícia ostensiva. O Rio de Janeiro não produz drogas e armas, é preciso rastrear de onde vem todo esse material para de fato atingir a espinha dorsal do crime, levar a sério a célebre frase: “Siga o dinheiro”- frase que ficou conhecida durante a investigação do caso Waltergate e que levou à renúncia do então presidente americano, Richard Nixon.

Precisamos dar o próximo passo e debater a reforma da lei de drogas, muitos dos seus dispositivos reproduzem um modelo ineficaz de “Guerra às Drogas”, que criminaliza as favelas e a pobreza. Estar em guerra pressupõe a suspensão de Direitos e se esse modelo tem se aplicado às favelas é evidente que a política adotada permitirá violações e extrapolações.

Esses são alguns caminhos que precisamos aprimorar, todavia, existe um amplo estoque de leituras e debates que vão além.

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