Observatório da Economia Contemporânea

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Argentina, as desditas dos hermanos

O país estrebuchou nas garras de mais uma crise cambial, entre as tantas que acometeram a economia no século XX e na aurora do século XXI

Foto: Luis Robayo/AFP
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Nossos vizinhos, os hermanos argentinos, sofrem as agruras de mais um período de turbulência econômica. A inflação vai aos píncaros. A fuga da moeda, o peso, é furibunda e descontrolada. Descontrole que expressa em uma divergência abissal entre a taxa de câmbio oficial e seu inimigo, o paralelo.

Sucedem-se as mudanças no Ministério da Economia. A ministra Silvina Batakis, mal chegou-se à cadeira em substituição ao renunciante Martin Guzmán, foi defenestrada. No mesmo movimento, o  presidente, Alberto Fernández, decidiu unificar os Ministérios de Economia, Desenvolvimento Produtivo e Agricultura, Pecuária e Pescas.

O superministério será comandado pelo presidente da Câmara de Deputados, Sergio Massa.

As substituições de presidentes e ministros não acalmam os mercados.

Vamos recordar: na segunda-feira 12 de agosto de 2019, os mercados mandaram mais um recado de desagrado aos eleitores argentinos. O peso desabou e a Bolsa despencou em meio à celebração dos “populistas”.

As manchetes e os colunistas dos jornais brasileiros deploraram a derrota do liberal Mauricio Macri. Os lamentos, porém, não pouparam o gradualismo da política econômica do então presidente argentino. Essas testemunhas de acusação, diga-se, são as mesmas que recomendaram um ajuste duro e implacável para a economia brasileira depois das eleições de 2014. Os porta-vozes dos mercados diziam que era preciso recuperar a confiança.

A Mercadolândia proclamava: se o indigente emergente arrumar a casa e seguir os cânones do tripé macroeconômico, os investidores ganham confiança e inundam o menino bem-comportado de investimentos diretos e compram confiantes títulos de dívida pública e privada. Como bem sabem os brasileiros, em 2015 a confiança enfunou as velas e a economia foi de vento em popa.

Já a Argentina estrebuchou nas garras de mais uma crise cambial. É preciso acentuar a expressão “mais uma”. Mais uma, entre as tantas que acometeram a economia dos hermanos no século XX e na aurora do século XXI.

O observador atento certamente guarda na memória os prodígios de Martínez de Hoz nos anos 1970. Empolgado com a abundância de petrodólares, tal como seu colega brasileiro Mário Henrique Simonsen, o “Mago de Hoz” promoveu a valorização do peso. As duas experiências de valorização cambial e endividamento externo naufragaram no maremoto da crise da dívida dos anos 1980.

Nascida dos escombros da crise da dívida, a conversibilidade de Domingo Cavallo, uma velharia colonial, foi reinventada no início dos anos 1990 para tirar a Argentina da hiperinflação. Um peso valia um dólar. A euforia dos primeiros anos de plata dulce desapareceu com a sucessão de crises financeiras: primeiro o México, logo depois a Ásia, culminando na desvalorização brasileira de 1999, o começo do fim.

Nos últimos 40 anos de abertura das contas de capital, as crises se multiplicaram nas chamadas economias emergentes. Do México à Argentina, passando pela Ásia e pela Rússia – sem se esquecer do Brasil –, as economias balançaram, açoitadas por crises cambiais e financeiras.

A experiência das globalizações financeiras – aquela das três derradeiras décadas do século XIX, assim como a dos nossos tempos, a era do Lobo de Wall Street – demonstra que os humores dos mercados financeiros globalizados, em sua insaciável voracidade, impõem suas razões às políticas monetária e fiscal dos países de moeda inconversível que abrem suas contas de capital, surfam nos ciclos de crédito externo e tornam-se devedores líquidos em moeda estrangeira.

Foram tão persistentes as lições da “realidade” que nem mesmo os defensores da abertura financeira resistiram à precariedade de suas sabedorias. No início da primeira década do terceiro milênio, os relatórios do FMI e do BIS já cuidavam de alertar os emergentes para os riscos inerentes aos ciclos de crédito e endividamento externo e sua procissão de incidentes cambiais, monetários e fiscais.

Estudos recentes, como o de Gerald Epstein, da Universidade de Massachusetts, demonstram: os países que mantiveram controles sobre os fluxos de capitais e sobre a taxa de câmbio tiveram maior sucesso em suas políticas macroeconômicas e de crescimento. O grupo de países que adotaram medidas prudenciais na posteridade das crises dos anos 1990 – Chile, Colômbia, Índia, Cingapura, Taiwan, Malásia e China – atravessou as turbulências da finança global exibindo maiores taxas de crescimento, menor volatilidade do PIB, melhor desempenho fiscal e reduzida vulnerabilidade nas contas externas.

Nas economias de moeda não conversível, como o real brasileiro e o peso argentino, a mobilidade de capitais tende a produzir valorizações indesejadas, seguidas de desvalorizações abruptas. Os regimes de taxa de câmbio flutuante não conseguem amenizar o baque e as autoridades monetárias do país de “moeda fraca” – com “ponto de compra” imprevisível – são tentadas a vender reservas ou subir as taxas de juro para estabilizar o curso do câmbio. Não funciona. Se as reservas são baixas diante de um passivo financeiro elevado em moeda estrangeira, tais medidas desesperadas acentuam a desconfiança na moeda local e aceleram a fuga de capitais.

Agora o Brasil sofreu danos mitigados com o “Efeito Orloff”, contágio que nos atormentava nas crises cambiais argentinas. Isso, graças ao quase desaparecimento da dívida pública em moeda estrangeira e às reservas cambiais acumuladas nos governos Lula. Heranças malditas da esquerdalha.

Entre o Natal e a Epifania de 2002, os argentinos protestavam nas ruas contra o corralito aos brados de “queremos dólares”. Desgraçadamente, nesse momento, a conversibilidade do peso já era assunto para historiadores.

O conservador Financial Times disparou, então, um editorial sobre os acontecimentos. Dizia o jornal inglês: “a crise argentina suscita questões fundamentais sobre custos e benefícios da abertura financeira nos países em desenvolvimento, convidados a seguir as prescrições do governo americano e do Fundo Monetário Internacional. Estes mercados estão sujeitos a surtos de euforia e depressão… Estimulam os governos a tomar emprestado quando os juros são baixos e logo depois deixam na mão, desprovidos de recursos”.

A aventura econômica argentina dos anos 90 – a farsa da conversibilidade com taxa fixa – teve o desfecho que o bom senso e a história do século XX preconizavam. Mas, como tem acontecido nesses tempos de celebração dos mercados, a opinião dominante e renitente só jogou a toalha quando o tropel da catástrofe galopava.

Pense o leitor em certas damas e senhoritos do colunismo nativo – impresso ou eletrônico – a quem devemos agradecer de joelhos a revelação diária de como é o mundo e, melhor ainda, de como deveria ser. Em algum momento, eles entoaram loas para as patranhas econômicas de Cavallo & Cia. Depois da derrocada de seus mandamentos econômicos, foram acometidos de uma modalidade bastante singular de esquizofrenia: dividiram seus ressentimentos entre a fúria contra o “calote”, a autocomplacência com suas próprias opiniões e a compaixão pela sorte dos investidores.

Lançaram a fúria contra os políticos argentinos “incompetentes e corruptos”, incorrigíveis no mister “de gastar acima de seus meios”. A autocomplacência os sabichões reservaram, como sempre, para seus próprios erros, avaliações, aconselhamentos e previsões grotescas. Tudo coroado com a compaixão pelo sofrimento dos velhinhos italianos, os coitadinhos generosos que esfregavam as mãos na esperança de receber o principal em moeda forte acrescido de juros de país periférico em derrocada financeira.

A propósito, seria bom relembrar o desespero e a revolta dos argentinos contra o corralito, decretado no fragor da crise por Domingo Cavallo, o pai da conversibilidade. A medida foi adotada para impedir que os depositantes locais tivessem acesso à prometida livre conversão de pesos em dólares.

A pedagogia sarcástica dos episódios revela, em sua crueldade essencial, até que ponto, no mundo das finanças, a pretensão de domínio e controle sobre os processos sociais tornou-se ilusória nos resultados e poderosa nos métodos.

É ilusória porque, quando entra em colapso a coordenação do mercado, o indivíduo – reduzido a um coágulo monetário e submetido à violência impessoal da “razão econômica” – só dispõe da violência mimética, da “razão” que comanda os estágios primitivos da vida social, para afirmar sua existência.

É poderosa porque as normas impessoais da finança terminam por desorientar e, depois, domesticar a rebelião dos indivíduos desgarrados e entregues à insegurança quanto a própria subsistência e o valor de sua riqueza.

O movimento das ruas foi incapaz de realizar os desejos de sobrevivência sem que a política reinstaurasse a soberania do país e a supremacia dos procedimentos administrativos constituídos à sombra do Estado moderno.  Cavallo e Menem, quando anunciaram a lei de conversibilidade, decretaram a impotência do Estado argentino, sobretudo, mas não só, em matéria econômica.

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[i] Clique e saiba mais sobre o Observatório da Economia Contemporânea no site do Instituto de Economia da Unicamp

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