Observatório da Economia Contemporânea

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A redução do ICMS de combustíveis: quem paga a conta? 

Não há qualquer garantia de que a diminuição do imposto chegue à bomba, podendo se converter em maior margem de lucro ao longo da cadeia produtiva

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
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A Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei complementar (PLP 18/2022) que classifica como essenciais bens e serviços nas áreas de telecomunicações, energia, transporte público e combustíveis. Deste modo, o ICMS de tais produtos fica limitado à alíquota modal, de 17% a 18%, a depender do estado.

Como a alíquota média da gasolina é de 27%, o PL contrata uma redução média de 10 p.p. no ICMS. A depender da alíquota atual de cada estado, a redução potencial de preços estaria entre R$ 0,70 e R$ 1,00 por litro.    

O projeto terá pequenos efeitos sobre o diesel, já que a alíquota média de ICMS do produto é inferior ao limite proposto. O mesmo vale para o gás de cozinha. 

Ante o exposto, coloca-se a seguinte indagação: a redução do tributo tem impacto efetivo sobre o preço final ao consumidor?

Para responder à questão, é preciso lembrar que a Petrobras passou a adotar formalmente, desde 2016, o preço de paridade de importação – PPI, agindo como se fosse mera importadora de combustíveis. Aumentos no preço do barril de petróleo e desvalorizações do câmbio tendem a ser transferidos aos preços internos da Petrobras, levando a uma elevada volatilidade e ao aumento de patamar dos preços.

Atualmente, estima-se uma defasagem de R$ 0,80/litro nos preços da gasolina nas refinarias da Petrobras em relação ao preço de importação. Desse modo, eventual reajuste dos valores pela empresa eliminaria ou consumiria parcela do possível impacto da redução do ICMS sobre preços finais da gasolina ao consumidor. 

Além disso, não há qualquer garantia de que a diminuição do imposto chegue à bomba, podendo se converter em maior margem de lucro ao longo da cadeia produtiva.

Trata-se de uma bomba fiscal com efeitos duradouros e que sacrifica políticas públicas com fortes efeitos redistributivos como saúde e educação

Logo, mantido o PPI, o PLP 18 tende a ser ineficaz para reduzir preço de combustíveis ao consumidor final. De outro lado, a perda tributária de estados e municípios será estrutural. Desde 2021, a inflação elevada, combinada à proibição de reajustes a servidores, impactou positivamente as contas públicas. A variação do deflator do PIB e, portanto, do PIB nominal (que influencia a arrecadação) acima do IPCA e INPC (aos quais está associado o comportamento da despesa) melhorou sensivelmente o resultado fiscal do governo geral. Segundo dados do Banco Central, em 2021, governos regionais tiveram o melhor resultado primário da história, com superávit de 1,13% do PIB.

Não há evidências de que tais resultados serão permanentes, posto que são baseados em fatores conjunturais. Todavia, o PLP 18, na versão aprovada pela Câmara, impõe a redução estrutural do ICMS sem qualquer compensação a partir de 2023. 

Em 2021, O ICMS representou 86% da arrecadação dos estados.  Apenas combustíveis, petróleo, lubrificantes e energia responderam por quase 30% do valor arrecadado com o imposto. Os dados são expressivos e mostram a relevância do ICMS para os estados. Ademais, os municípios ficam com 25% do ICMS, por isso esses entes federativos também perderão receitas.

O ponto central a destacar é que os gastos mínimos obrigatórios em educação e saúde são indexados à receita de impostos de estados e municípios. Logo, uma queda da receita poderia afetar diretamente esses e outros serviços públicos à população.

Em cada estado, o Fundeb é composto por 20% de diversos impostos, especialmente o ICMS. Caso haja uma perda de R$ 90 bilhões no ICMS em razão do PLP 18, a queda do do Fundeb deverá ser de R$ 18 bilhões. Como atualmente a União faz a complementação no Fundeb com o valor de 15% do fundo estadual, a perda adicional seria de R$ 2,7 bilhões. Logo, a redução do Fundeb seria da ordem de R$ 21 bilhões.

Convém lembrar que, diferentemente da União, estados não são emissores de dívida soberana, o que amplia sua dependência frente à arrecadação de tributos. Portanto, ao longo do tempo, o ajuste à queda da receita deve ocorrer por meio da precarização de serviços públicos. 

É como se o usuário do SUS e da educação pública fosse a variável de ajuste e “pagasse a conta” pelos elevados preços praticados pela Petrobras e pelos produtores do etanol e biodiesel. No caso do SUS, importa assinalar que, em 2019, quase 60% dos gastos públicos de saúde eram de responsabilidade de estados e municípios. As perdas tributárias do PLP 18 ocorrem em um contexto de redução da participação relativa da União no financiamento do SUS, agravada pela Emenda Constitucional no 95. Essa emenda estabeleceu o teto de gastos e congelou o valor mínimo aplicado federal em saúde no patamar de 2017. 

Para os próximos anos, em decorrência do teto de gastos, os dados do Ministério da Economia apontam para a redução da despesa federal primária como proporção do PIB. Estima-se que essa proporção passará de 18,2% em 2022 para apenas 16,7% em 2025. A política fiscal em curso afasta a perspectiva de crescimento do gasto federal. Cessando-se os efeitos conjunturais da elevada inflação sobre as contas públicas, as perdas tributárias dos entes não devem ser compensadas por aumentos de repasses federais, mantido o atual arcabouço fiscal restritivo.  

Neste contexto, reforça-se o cenário de que o PLP 18 não apenas é ineficaz como tem largo potencial para induzir uma precarização estrutural dos serviços públicos, de modo que seus efeitos transcendem o curto prazo. 

No entanto, não se deve concluir que a redução da tributação indireta é em si mesma negativa. O Estado do bem-estar social brasileiro está de certa forma atravessado por uma contradição: gastos redistributivos, como os de educação e saúde, são financiados por receitas regressivas, associadas à tributação indireta, que responde por cerca de 50% da carga tributária. Em outros termos, seria positivo reduzir o peso dos impostos sobre o consumo de bens e serviços essenciais. 

No entanto, a diminuição da tributação indireta deve ser pensada no âmbito de uma reforma que amplie a tributação direta sobre renda e patrimônio, alinhando o Brasil aos países da OCDE, com efeitos redistributivos relevantes.

Outro ponto é que a perda de arrecadação, decorrente da redução do pagamento de ICMS pelos consumidores brasileiros, poderia ser compensada pelo pagamento de tributos por empresas, principalmente por aquelas que atuam com elevadíssima rentabilidade na exploração de bens públicos e na prestação de serviços públicos.

No ano de 2021, a Petrobras apresentou um EBITDA de R$ 234 bilhões. Após o pagamento de tributos sobre a renda (apenas R$ 11,7 bilhões), investimentos e desinvestimentos, entre outros, o fluxo de caixa livre da estatal foi de R$ 209,9 bilhões. Nesse ano, a cotação média do Brent foi de US$ 70,73 por barril. Atualmente, a cotação do Brent é de cerca de US$ 120 por barril. Admitida uma cotação média do Brent de US$ 110 por barril, o fluxo de caixa livre da Petrobras deverá ser superior a R$ 300 bilhões em 2022, o que poderá ensejar o pagamento de dividendos aos seus acionistas da ordem de R$ 200 bilhões, valor muito maior que a mencionada perda dos estados e municípios.   

As grandes empresas petrolíferas internacionais também devem apresentar elevado fluxo de caixa livre em 2022, principalmente pelo fato de muitas delas serem parceiras da Petrobras especialmente na província petrolífera do Pré-Sal, onde estão localizados os poços mais produtivos do mundo. Para um valor de US$ 93 por barril de petróleo no 1º trimestre de 2022, o custo total de produção da estatal – incluindo participações governamentais -foi de apenas US$ 41 por barril. Assim, nesse trimestre, a receita líquida da Petrobras foi de US$ 52 por barril.

É possível, então, que o fluxo de caixa livre das empresas produtoras de petróleo no Brasil seja da ordem de R$ 400 bilhões em 2022. Dessa forma, a perda de arrecadação de R$ 90 bilhões representa apenas 25% do fluxo de caixa livre dessas empresas. É importante destacar, ainda, que essa perda é inferior ao pagamento de dividendos de R$ 101 bilhões, decorrente dos resultados financeiros da Petrobras em 2021.   

Nesse contexto, há várias alternativas para compensar a perda de arrecadação dos estados e municípios: estabelecer uma alíquota mínima para o imposto de exportação de petróleo bruto, alterar a legislação brasileira para permitir a cobrança de ICMS sobre as operações de exportação de produtos primários como petróleo bruto e minério de ferro, tributar os dividendos pagos pelas empresas exportadoras desses produtos e aumentar a tributação sobre a renda.

Em particular, a adoção de alíquotas flexíveis de imposto de exportação sobre o petróleo bruto, de natureza progressiva e incidindo apenas acima do preço de equilíbrio (break-even), seria um instrumento relevante para induzir seu refino no País. Com isso, o imposto reduziria os lucros extraordinários das empresas petrolíferas e poderia financiar políticas públicas para redução de preços ao consumidor. 

A adoção do Imposto de Exportação seria viável sobretudo no Brasil, tendo em vista a combinação de poços muito produtivos no Pré-Sal com baixa participação governamental na renda petrolífera. Até mesmo o governo conservador do Reino Unido passou a taxar os ganhos extraordinários das empresas de petróleo.

O PLP 18 não apresenta qualquer alternativa dentre as elencadas. A proposta não endereça uma solução estrutural para a redução do preço de combustíveis e preserva, num cenário de preços do petróleo em alta, a elevadíssima rentabilidade das grandes empresas petrolíferas e os dividendos de seus acionistas. Em suma, trata-se de uma bomba fiscal com efeitos duradouros e que sacrifica políticas públicas com fortes efeitos redistributivos como saúde e educação.

Clique e saiba mais sobre o Observatório da Economia Contemporânea no site do Instituto de Economia da Unicamp

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