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Ciência: como e para quem?

Para Popper, o essencial quanto ao Estado é a garantia do ‘debate livre’, mas é impossível omitir, hoje em dia, seu papel crucial no fomento à ciência e tecnologia

Karl Popper
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Nossa ignorância é sóbria e ilimitada. […]. A cada passo que damos, a cada problema resolvido, não apenas descobrimos problemas novos e não solucionados, mas descobrimos que onde pensávamos pisar terreno firme e seguro, tudo é de fato incerto e vacilante.

Há pouco mais de 60 anos, Karl Popper apresentava essas considerações em um simpósio organizado pela Associação Alemã de Sociologia, que daria origem a uma série de debates que ficaram conhecidos como “disputa do positivismo na sociologia alemã”.

Popper chama a atenção para um aspecto particularmente benigno da ciência moderna: a busca ética pelo saber, orientada pela dialética entre conhecimento e ignorância. A característica essencial do conhecimento científico é ser passível de refutação e substituição por teorias que se mostrem mais congruentes com as evidências disponíveis. Se não podemos justificar racionalmente nossas teorias podemos, ao menos, criticá-las racionalmente.

A objetividade científica resultaria, portanto, “da racionalidade do método crítico” mas, também, de  um certo número de “ideias sociais”: concorrência entre cientistas e “escolas”; tradição (a “tradição crítica”); instituições (publicação em journals de diferentes orientações; discussão em congressos); e, not least, o poder do Estado e sua tolerância para com o “debate livre”.

De uma perspectiva atual, esse rol de “ideias sociais” parece acanhado e talvez ingênuo. Boa parte da teoria da ciência  subsequente foi construída em diálogo crítico com (e contra) Popper, enfatizando os condicionantes sociais e históricos (e políticos e econômicos) da prática científica. A partir dos anos 1970, houve um crescente volume de estudos socioantropológicos sobre ciência e tecnologia e, no campo das ciências econômicas, a renovação da vertente de estudos sobre política industrial, estratégias empresariais e sistemas nacionais de inovação, bem como suas conexões com “desenvolvimento”.

As transformações tecnológicas do período contribuíram para o florescimento desses campos de estudo. Mudanças importantes ocorreram nas formas de produzir e consumir, afetando também a sociabilidade e os relacionamentos. Mudou a sociedade, e com ela o “espírito” da ciência. Persiste a concorrência entre cientistas e grupos de pesquisa, mas hoje ela é regulada por métricas e rankings cujo efeito mais notável tem sido inflação de publicações e concentração do mercado editorial. A competição feroz entre gigantescos conglomerados empresariais pelo controle de tecnologias e recursos transformou ainda mais radicalmente a paisagem. Boa parte da pesquisa tecnológica “de ponta” hoje é feita em laboratórios corporativos sob regime de segredo industrial. A imagem ascética do cientista em busca desinteressada pela verdade foi deslocada pela figura menos austera do empreendedor científico e pelo exibicionismo de bilionários que patrocinam viagens espaciais. Não obstante, persiste também a ideia de uma “comunidade” científica, ainda capaz de se mobilizar em defesa dos valores centrais que ordenam sua prática.

Para Popper, o essencial quanto ao Estado é a garantia do “debate livre”, mas é impossível omitir, hoje em dia, seu papel crucial no fomento à ciência e tecnologia. A pesquisa avançada pressupõe um ecossistema institucional complexo, com investimento em pesquisa básica e formação de quadros e sistemas de incentivo à inovação. Nada disso brotará como cogumelos por obra e graça do “mercado”.

A conjugação de interesses empresariais e nacionais está longe de ser novidade, vide o papel do gasto militar dos países centrais ao longo da história. A disputa atual pelo 5G não é apenas concorrência entre empresas por fatias de mercado, mas disputa entre Estados Unidos e China pelo controle do padrão de operação do 5G.

A centralidade da tecnologia no mundo atual é dada por sua conexão com o poder – capacidades produtivas mais eficientes e potentes; capacidade de destruição e dissuasão; controle sobre a informação e recursos estratégicos. A antiga divisão internacional do trabalho que distinguia os países industrializados dos primário-exportadores não foi superada, mas a ela se sobrepôs uma nova divisão “intelectual” que opõe os países produtores e os consumidores de tecnologia.

Uma nova geografia econômica foi se desenhando: a transferência massiva de emprego industrial para a Ásia e a ascensão da China à condição de potência tecnológica capaz de desafiar a hegemonia dos EUA desarranjaram a precária ordem internacional pós Guerra Fria. A América Latina – e o Brasil nela – permanece à margem dessa reconfiguração. O caso brasileiro é especialmente dramático. Há não muito tempo uma promissora potência industrial, hoje caminhamos para voltar a ser uma economia primário-exportadora. O sucateamento da universidade pública e o desmonte da política de ciência e tecnologia ora em curso não são circunstanciais, são parte de um projeto que urge derrotar.

A civilização tecnológica traz outros desafios, ainda maiores: no curto período de dois séculos a superfície do planeta foi radicalmente transformada e a humanidade desenvolveu padrões de consumo que pesam como ameaça sobre seu futuro, embora a grande maioria das pessoas tenha sido excluída de seus benefícios. A desigualdade aumenta e se intensifica – entre países e dentro deles – e as instabilidades da “ordem” global tornam o quadro ainda mais turvo.

Sabemos muito, graças ao progresso da ciência, mas é fato que esse progresso nos torne mais conscientes de nossa ignorância? Assim como admitia a influência de fatores extra-científicos na pesquisa, Popper descartou a neutralidade com relação a valores como requisito da “boa” ciência. A práxis científica não subsiste sem os valores que a sustentam – sem uma ética propriamente científica. Não será suficiente, precisamos de um outro nível de compromisso, mais elevado, para com o futuro – se quisermos que todos os seres humanos tenham direito a ele.

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