Lado

Precisamos falar sobre bissexualidade

Setembro é considerado o mês da visibilização da bissexualidade, sob a qual pairam inúmeros preconceitos e apagamentos

Parada LGBT de São Paulo. Foto: Paulo Pinto/FotosPublicas.
Apoie Siga-nos no

A sexualidade humana é mais complexa do que imaginamos, sendo necessário assegurar que tratemos de cada particularidade das múltiplas formas de expressão da sexualidade.

No mês de setembro é comemorado o mês da visibilidade bissexual e, assim como qualquer sexualidade, suas singularidades precisam de ser analisadas.

Quem são os bissexuais?

São aqueles que sentem atração sexual, emocional e afetiva por pessoas de ambos os gêneros. A importância de falarmos sobre bissexuais e bifobia é bastante óbvia: Bissexuais são percebidos de forma diferente de heterossexuais e homossexuais. Não raras vezes, tornam-se invisíveis, inclusive dentro do debate LGBTQIA+.

Mulheres bissexuais enfrentam desafios particulares em validar sua sexualidade como completa e singular, uma vez que há uma intersecção entre as opressões de gênero e sexualidade.

A mulher bissexual

06/06/2015- São Paulo- SP- Brasil- 13ª Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo na Avenida Paulista. Foto: Foto: Paulo Pinto/ Fotos Públicas

A bifobia e a violência estrutural contra mulheres são oriundas, sobretudo, do sistema patriarcal que impôs outrora quais seriam as posições ocupadas pela mulher e pelo homem, tanto na família, quanto na sociedade.

O patriarcado se estabeleceu como sistema de estruturação social, no qual os homens são postos em centralidade em desprivilegio das mulheres, que por muito tempo tiveram sua existência limitada à esfera privada na execução do papel reprodutivo e do trabalho doméstico, não remunerado ou sub-remunerado.

Assim, as relações heterossexuais pautadas no privilégio masculino foram instituídas como norma, o que desestimula e reprime a afetividade entre mulheres, em especial de caráter romântico-sexual. Esse desestímulo ocorre, por exemplo, pelo apagamento histórico e social da existência dessas relações, dissimulando um tom de inexorabilidade à heterossexualidade.

Na sociedade pós-moderna, apesar dos movimentos sociais terem mitigado essas opressões de gênero, o sistema capitalista se mantém articulado no tripé das opressões de gênero, raça e classe, ainda que sob novas facetas.

Com efeito, os tempos mudaram, mas a relação heterossexual permanece como norma, pois é instituto basilar da estrutura familiar patriarcal que conserva a divisão sexual do trabalho, de modo que as demais orientações sexuais são reprimidas e oprimidas dentro desta lógica.

Por exemplo, as relações da bissexual com outras mulheres quando exercida de forma experimental e esporádica – prática apelidada de “bi de balada” -, são socialmente “relevadas”, pois a heterossexualidade segue como norma, ainda que com episódios excepcionais.

Ainda nessa lógica, maquiada sob o discurso de libertação sexual feminina, ocorre culturalmente a fetichização da relação entre mulheres, a qual se torna aceitável desde que destinada ao desejo masculino, nada obstante isto reforce o ideário de promiscuidade da mulher bissexual.

Ou seja, embora possa parecer, superficialmente, que mulheres bissexuais são mais aceitas socialmente por poderem estabelecer também relações heteronormativas, não se trata de uma aceitação. Essa aparente aceitação significa uma deturpação do que seria a bissexualidade como forma de assimilá-la ao modelo da heterossexualidade compulsória[1], inclusive de forma a diminuir, invisibilizar e inibir a vivência de relações unicamente entre mulheres.

Assim, mesmo a mulher pós-moderna que ousa transgredir a heteronorma imposta sofre as diversas formas de violência da sociedade que tenta, a todo custo, readequá-la ao padrão social tradicional que tem as suas bases na assunção do papel reprodutivo e do trabalho doméstico pela mulher.

Precisamos falar sobre o unicórnio na sala, bifobia existe!

Nesse contexto, a bifobia figura como a materialização da estrutura patriarcal ao desafiar o padrão heteronormativo imposto pela sociedade, que é erigida a partir do modelo hegemônico no qual as relações afetivo-sexuais são estabelecidas entre o homem e a mulher como padrão social.

O sistema heteronormativo nega a diversidade sexual para se reafirmar como modelo a ser seguido. Assim, o mecanismo opressor suprime tudo o que não se encaixa neste padrão, levando ao imaginário comum de que a normalidade é heterossexual e, portanto, qualquer outra expressão da sexualidade humana é anormal, errada. Com a bissexualidade não é diferente.

Para negar sua existência e se assegurar como padrão, o movimento de supressão heteronormativo não apenas taxa como anormal, mas vai além, negando por completo a sua existência.

Por vezes, a pessoa bissexual é forçada a escolher se relacionar com “um gênero de preferência”, como se isto a tornasse mais ou menos heterossexual ou homossexual. É comum ouvirmos que bissexuais são confusos, estão passando por uma fase de experimentação e, assim, “escolherão um lado” em breve.

No caso das mulheres bissexuais, normalmente presume-se que esta escolha seja direcionada à heterossexualidade, pois se estabelece o discurso cultural de que o relacionamento entre mulheres seria apenas uma experimentação ou uma fase decorrente de desilusões amorosas.

Assim, nas relações heteroafetivas das bissexuais, suas interações com mulheres são desvalorizadas, ou mesmo fetichizadas, enquanto nas relações homoafetivas estabelece-se uma desconfiança de que se trate apenas de uma fase e a mulher bissexual escolha regressar estabilidade da heteronorma.

É importante esclarecer que não existe problema algum em bissexuais se relacionarem mais intensamente com pessoas de um ou outro gênero. Isso não o torna menos bissexual, a questão é retirar o poder de narrativa sobre uma sexualidade tão complexa da pessoa que a vive a partir de presunções.

Também não é necessário que a pessoa já tenha tido relação sexual e afetiva com ambos gêneros para “provar” sua sexualidade, pois a afetividade e atração físicas são características importantes na construção da sexualidade do indivíduo bissexual.

Precisamos sempre ressaltar estes pontos, porque é neste sentido que as microagressões acontecem. Esse é o dia a dia vivido pelo bissexual. Quando não estão em um relacionamento são confusos e/ou promíscuos, e, a depender do gênero de seu parceiro(a), são considerados hétero ou homossexuais.

Esse mecanismo torna invisível uma sexualidade que é completa. Não se trata de uma sexualidade de transição, como alguns chamam, mas sim de uma expressão natural de sexualidade humana como qualquer outra. Parece clichê, mas não, bissexuais não são confusos ou estão experimentando. Bissexuais existem.

A insinuação de promiscuidade também funciona dentro desta lógica opressora e denota de forma cruel que a pessoa bissexual não exprime sua sexualidade de forma saudável e “normal”. As acusações de que bissexuais não são fiéis e confiáveis são constantes e resultam na dificuldade enfrentada pela comunidade em ter relacionamentos saudáveis, já que são taxados de indecisos, infiéis, promíscuos e confusos.

Neste sentido, ao contrário do imaginário de algumas pessoas, os bissexuais não têm o melhor dos dois mundos. Infelizmente, é bastante comum a noção de que a bissexualidade fornece para a pessoa uma zona de conforto, em que ela poderia escolher agir enquanto gay/lésbica ou heterossexual a depender da situação.

Esse é mais um dos muitos mitos que circunda a bissexualidade. O que acontece na realidade é que bissexuais sofrem com a completa invisibilização, uma das maiores faces da bifobia.

Violência psicológica e saúde mental

As violências sofridas com a transgressão da heteronormatividade são diversas, podem vir a ser física, sexual (estupro corretivo) e até psicológica. Entende-se como violência psicológica atos de discriminação, desrespeito, chantagem, humilhação, manipulação, agressão verbal, constrangimento, intimidação, indiferença e até alienação parental.

Nesse contexto, importante chamar atenção ao dano invisível gerado na saúde mental de mulheres bissexuais, cuja violência sofrida, por vezes, inicia-se no próprio ambiente familiar e se perpetua até nos próprios relacionamentos afetivos com pessoas monossexuais.

O sentimento de despertencimento e inadequação provocado em pessoas bissexuais tem sensíveis repercussões em sua saúde mental, por exemplo, segundo o estudo “Bisexuality, mental health, and media representation[2], as mulheres bissexuais são 5,9 vezes mais propensas a cometer suicídio do que mulheres heterossexuais,  e 3,5 vezes, em comparação com mulheres lésbicas.

Visibilizar a violência psicológica enquanto problema que afeta a saúde de mulheres bissexuais é medida urgente, já que somente assim será possível definir as ações e políticas governamentais necessárias voltadas ao combate das desigualdades sociais estruturais que acometem essa população.


[1] RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Tradução por Carlos Guilherme do Valle. Revista Bagoas, Natal, n. 5, 2010, p. 17-44.

[2] https://medium.com/@larissarainey/a-bissexualidade-como-fator-de-desigualdade-social-na-sa%C3%BAde-mental-2a6c849dcae3.111111

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo