Justiça

Mês da visibilidade lésbica é oportunidade de colocar o dedo na ferida

As lésbicas e as pessoas não binárias de vivências afetivas com mulheres têm sua sexualidade, liberdade, histórias e corpos invisibilizados

Marcha das mulheres lésbicas. Foto: Paulo Pinto/ Fotos Públicas
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Neste mês de agosto de 2020, mês da visibilidade lésbica, em meio a tanto caos e desinformação, nós da Rede Lado decidimos pautar esse tema sem tabu e, claro, sem deixar de pôr o dedo na ferida do patriarcado.

Clarke apud Curiel, na obra El lesbianismo feminista: una propuesta política transformadora[1], afirmam que ser lésbica em uma cultura tão machista, capitalista, misógina, racista, homofóbica e imperialista é um ato de resistência. A lésbica, que tomou como amante outra mulher, conseguiu resistir ao imperialismo do amor em sua vida. A lésbica descolonizou o próprio corpo e rechaçou a servidão que implica as relações heteronormativas.

Ainda em 1979 o movimento de lésbicas feministas surgiu com um discurso em torno do direito ao prazer, ao direito sexual dissidente, à liberdade e pelo direito de ser respeitada por ser mulher e por ser lésbica. Foi essa a linguagem que elas levaram para dentro do movimento homossexual, do movimento feminista e para a sociedade em geral, como forma de dissipar o machismo, o sexismo e a homofobia.

Acontece que, nos últimos quarenta anos de lutas por cidadania e reconhecimento no Brasil, as lésbicas organizadas se confrontaram com dificuldades tanto no movimento feminista, quanto no LGBTQIA+. Ou seja, ainda somos demasiadamente invisíveis para registrar nossas histórias.

Por isso, apesar de respeitarmos todas as expressões de gênero e sexualidade do ser humano e compartilharmos a constante luta pela superação do binarismo, reivindicamos esse mês para a reparação do apagamento da história de mulheres como um todo, mas em especial as mulheres que se relacionam com mulheres.

Este artigo, portanto, também tem a intenção de destacar as principais pautas comuns e específicas das vidas e mentes plurais de mulheres lésbicas, bissexuais e pessoas não binárias que se relacionam com mulheres.

Um curioso caso da colônia Brasil

Na cidade de Salvador/BA, em 26 de janeiro de 1592, a portuguesa Felipa de Sousa foi condenada pela Inquisição por ter se relacionado com seis mulheres. Foi açoitada publicamente, teve seus bens confiscados, foi obrigada a comparecer a auto de fé descalça e com vela acesa na mão, incumbiu-se de penitências espirituais e ainda precisou pagar as custas processuais.

O pesquisador Paulo Rezzutti revelou que o primeiro padre visitador do Tribunal do Santo Ofício no Brasil, Heitor Furtado de Mendonça, recebeu denúncias de 29 mulheres pelo mesmo “crime”: relacionamentos lésbicos. Sete acabaram julgadas pela Inquisição e punidas, mas nenhuma de forma tão contundente quanto Felipa de Sousa.

Uma de suas ex-amantes, Paula de Siqueira, comentou sobre relações entre duas para suas amigas e isso despertou o interesse do padre.  Conforme o processo da Inquisição, Felipa tinha 35 anos, era casada com um pedreiro e ganhava a vida como costureira, confessando ao inquisidor ter tido seis parceiras em oito anos.

Assim, foi sentenciada com o “degredo para sempre para fora da capitania da Baía de Todos os Santos”, conforme documento nº 1267 “Processo de Felipa de Sousa cristã velha presa no cárcere do Sancto Officio”, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal.

O tal degredo constitui no exílio imposto como punição de um crime grave, constituindo uma forma de banimento.

Por fim, foi obrigada a jejuar a pão e água 15 sextas-feiras e nove sábados em honra da pureza da Virgem Maria e a rezar 33 vezes um salmo. Depois foi levada ao Pelourinho e açoitada diante de todos. Nunca mais tiveram notícias de Felipa.

O também pesquisador Luiz Mott, fundador da organização não-governamental Grupo Gay da Bahia, ressalta que se o caso de Felipa ocorresse na Europa daquela época, o destino teria sido a fogueira — mas na colônia, longe dos olhares do Vaticano, as penas foram aliviadas.

Com a descoberta da história de Felipa, temos o primeiro registro de lesbofobia da história do Brasil. Por isso, desde 1994, seu nome é emprestado a um prêmio internacional concedido pela Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas, em reconhecimento à coragem daqueles que lutam pelos direitos dos homossexuais, bissexuais e transgêneros em todo o mundo.

13ª Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo na Avenida Paulista. Foto: Paulo Pinto/ Fotos Públicas

Tabus e violências

O primeiro Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil, lançado em abril de 2018, descreveu que

ser lésbica é compreender que não existem espaços feitos para você e que sua existência nunca será validada pelo entorno social. Ao contrário, existirá sempre a necessidade de provar-se útil, íntegra e capaz, apesar da sua condição lésbica, pois há uma falsa crença de que a homossexualidade é uma expressão de uma perversão de caráter, um desvio existencial que se expressa por meio da sexualidade fora do padrão.

O referido Dossiê mostra um crescimento acentuado no número de homicídios de mulheres lésbicas no período entre 2000 e 2017. Dos 180 homicídios de lésbicas registrados, 126 ocorreram entre os anos de 2014 e 2017.

Outra característica importante é o local em que os crimes ocorreram: na maioria dos casos registrados as agressões se deram em vias públicas, estabelecimentos comerciais, espaços ermos etc. Em 2014, 71% dos casos ocorreram no “espaço público”. Em 2015, 68%, em 2016, 78% e em 2017, 71% novamente.

Essa particularidade chama atenção e nos leva a refletir. Alguém presenciou esses crimes em vias públicas? Se sim, por que não ajudaram a vítima? A sociedade deliberadamente deseja a morte de mulheres lésbicas?

Outra face horrível da violência sofrida por lésbicas é a violência sexual, aí incluído o crime de estupro. Chamado “estupro corretivo”, a prática consiste na motivação do agressor em “converter” a vítima, pessoas de orientação sexual divergentes da norma hegemônica, sobretudo mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais, à heterossexualidade.

Segundo levantamento exclusivo da Gênero e Número a partir de dados obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan, parte do Ministério da Saúde) em média, 6 lésbicas foram estupradas por dia em 2017, em um total de 2.379 casos registrados. Em 61% dos casos notificados, a vítima foi estuprada mais de uma vez. Os homens são algozes. Aparecem como autores em 96% das agressões sexuais.

Foi assim com uma estudante da UNB (Universidade de Brasília) que, após ser violentamente espancada com uma barra de ferro, ainda ouvia do seu agressor, durante o ato covarde: “sua lésbica nojenta”. O ataque aconteceu no estacionamento da universidade, em 2013, sendo o agressor não encontrado, mesmo com a divulgação do seu retrato falado.

Outro caso noticiado foi o do estupro corretivo ocorrido no estacionamento da Universidade do Estado do Rio (UERJ), em 2013, durante uma recepção aos calouros. No ato, uma estudante foi estuprada por outro aluno, que disse que ela “ia aprender a gostar de homem”.

Assim como a violência pode ocorrer nas vias públicas, ela também ganha outros tons por meio da linguagem, ao ser perpetrada nas redes sociais através de ataques virtuais. O discurso de ódio na internet contra mulheres lésbicas e as pessoas não binárias ocorre por meio do repúdio a estes corpos dissidentes, a partir de ataques hostis e simultâneos ao perfil de ativistas, pesquisadores e militantes dos direitos humanos, renegando a insurgência política desses sujeitos.

Na dissertação “Falar do Ódio Fora do Ódio”, publicada em 2018 foram apuradas situações de violências vividas por três ativistas lésbicas na internet, constatando-se que estas mulheres foram hostilizadas publicamente em um discurso que colocava sua sexualidade como abjeta. Em um dos casos, uma das ativistas recebeu no ano de 2016 mais de dois mil comentários discriminatórios versando sobre sua colocação no mundo enquanto negra, gorda e lésbica.

Essa prática virtual abala psicologicamente pessoas dissidentes e “tem como intenção promover o silenciamento daquele que a quem se odeia[2], a fim de afastar sistematicamente do espeço público virtual este sujeitos historicamente invisibilidades.

Estamos em 2020, mas as práticas de tortura física seguem inalteradas, tendo ainda ocorrido uma expansão das formas de violência ao alcançar o espaço virtual. Com um governo neofacista e genocida a perspectiva para os anos vindouros não é animadora.

As lésbicas e as pessoas não binárias de vivências afetivas com mulheres têm sua sexualidade, liberdade, histórias e corpos invisibilizados e violados cotidianamente. Não importa se essa pessoa reproduz ou não a performance da feminilidade, às suas especificidades e formatações, lésbicas sofrem por um mal de mesma raiz, a condição subalterna e submissa esperada que o sexo feminino lhe impõe.

Mulheres não são sujeitos de direitos, são devedoras perenes da satisfação do ego e do prazer masculinos. Objetificadas e estigmatizadas como bizarras, nojentas, perturbadas, quebradas e “mal-comidas”, são inúteis à sociedade capitalista patriarcal. Afinal, para que serve uma pessoa do sexo feminino que não se pauta pela satisfação do homem?

Igualmente necessário, o olhar interseccional das opressões estruturais de raça e classe. Mulheres lésbicas ou pessoas de identidade de gênero não binária, pretas e pobres são vitimadas com mais frequência e/ou intensidade que as companheiras brancas de classe média ou alta.

Nenhuma vivência lésbica é idêntica à outra. Nossa pluralidade e nossa rebeldia intrínseca à sociedade heteronormativa nos vitimizam na mesma proporção que despertam o ímpeto revolucionário. La revolución mis amigos, será lesbiana o no será.


[1] CLARKE, Cherlyl, apud.CURIEL, Ochy. El lesbianismo feminista: una propuesta política transformadora. Disponível em: http://lahaine.org/index.php?blog=3&p=23079. Acessado em: 19/08/2020.

[2] MOTTER, Juliana. Falar do Ódio Fora do Ódio: Testemunho de Ativistas Lésbicas sobre o Discurso de Ódio nas Redes Sociais. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania) – Faculdade Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, UnB. Brasília, 2018.

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