Justiça

Coronavírus: mais um episódio da precarização da classe trabalhadora

Com a devastação do coronavírus, ou o modelo neoliberal é sepultado, ou então classe trabalhadora terá de suportar o inimaginável

Foto: Mladen Antonov/AFP
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O desamparo social, econômico e legal da classe trabalhadora tornou-se notório no último mês, desde que se observou o crescimento exponencial dos casos de coronavirus mundialmente. As medidas imediatas contra a pandemia requerem isolamento social gerando recessão econômica e desemprego e, como consequência, ocorre a diminuição ou extinção de renda e o adoecimento, efeitos da crise que afeta de forma mais contundente ao trabalhador, parte mais ativa e também mais vulnerável em todo o caos que se instala.

A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros. A pandemia escancarou o fato de que inexiste em qualquer dos países atingidos, leis de cunho social capazes de proteger a relação de trabalho, o que gera uma sensação de abandono e torna um pouco mais difícil a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis nas relações de trabalho, bem como de promoção da dignidade da pessoa humana.

Dadas as circunstâncias, a adoção de medidas excepcionais se fez necessária à preservação da empregabilidade e do trabalho digno no cenário adverso da pandemia do COVID-19. Com a crise causada pela pandemia do coronavírus, o Brasil não passou imune.

Aqui, a pandemia escancarou a situação de precarização que os trabalhadores formais e principalmente os informais vêm sendo submetidos. Justamente porque nosso ordenamento jurídico (ainda) prevê respeito à seguridade social, algumas (poucas) medidas de urgência começaram a ser tomadas, sem grandes alterações legais.

Para alguns benefícios, não é necessária a presença no INSS

O Instituto Nacional do Seguro Social determinou a suspensão de alguns requisitos à concessão de benefícios, em casos que exijam comparecimento pessoal às suas agências. Assim, está suspensa a necessidade de realizar a prova de vida para aposentados, conforme Portaria 375/2020, publicada em 17/03/2020, bem como a realização de perícia presencial por médico oficial, para concessão de benefícios. Mesmo nos requerimentos já agendados a documentação poderá ser apresentada pelo site ou aplicativo MEU INSS.

Também, a suspeita de contágio pelo COVID-19 em pessoas que precisam de afastamento das suas atividades por mais de 15 dias, passa a figurar no rol de doenças passíveis de percepção do benefício de auxílio-doença.

Contudo, para fazer jus à percepção do benefício, os requisitos continuam os mesmos: o trabalhador deve ser segurado do INSS e com carência cumprida de 12 meses de recolhimento e manter a qualidade de segurado, com o devido atestado médico, recomendando o afastamento por período superior a 15 dias.

Assim, a quem devem recorrer os desempregados, seus familiares, maior parte dos trabalhadores informais e moradores de rua que sequer tem como realizar o distanciamento social?

Neste sentido, duas medidas assistências foram tomadas recentemente. A primeira, trata-se da antecipação do pagamento de R$ 200,00 do BPC-LOAS para quem já aguarda a avaliação do direito ao benefício. Ocorre que a medida ainda depende de aprovação do Congresso Nacional e os CRAS – Centro de Referência e Assistencial Social, responsáveis pelo cadastramento, já estão fechados, o que impossibilitaria a concessão de novos benefícios.

A segunda medida, é o adiantamento do 13º salário dos aposentados e pensionistas. A medida ainda depende de aprovação de decreto presidência, mas expectativa é de que a primeira parcela será paga entre 24 de abril e 08 de maio, e a segunda, entre 25 de maio de 08 de junho.

Apesar de conferir um benefício substancial neste momento de crise, o adiantamento impactará os pagamentos em período natalino, em uma economia que possivelmente ainda estará fragilizada pela pandemia. Já o valor do LOAS não paga sequer uma cesta básica, que varia entre R$ 368,69 (Aracajú) e R$ 517,51 (São Paulo).

Comparado com outros países, medidas são insuficientes

Pela forma como o governo vem conduzindo o caso, percebe-se que há pouco esforço em amenizar as dores da população e que as soluções apresentadas possuem diversos entraves que acabam por torna-las incipientes para tratar desta que já é considerada a mais grave crise do século XXI.

Para ilustrar como o governo brasileiro tem beirado à omissão e quando age, o faz na contramão tendência de comportamento ao redor do globo, cita-se o exemplo das providências econômicas outros países afetados pela pandemia.

No Reino Unido, o Ministro das Finanças assumiu nunca ter enfrentado uma luta como essa, e determinou a liberação de 330 bilhões de libras em empréstimos para as companhias afetadas pela pandemia, além de folga no pagamento de hipoteca para proprietários adoecidos. Para impedir a devastação da economia, o Primeiro Ministro garantiu que pagará até 80% dos salários dos empregados.

O presidente da França, Emmanuel Macron, anunciou a suspensão da tramitação da reforma da Previdência. Determinou o adiamento de segundo turno das eleições municipais (o primeiro ocorreu no domingo 23/03), a suspensão da cobrança de impostos, de contas de água, gás e aluguéis, além de garantir 300 bilhões de euros em financiamentos para pequenas empresas.

Na China, o primeiro-ministro informou que aumentará 312,65 bilhões de reais a cota de refinanciamento para empréstimos de bancos a pequenas empresas e fazendeiros que tiveram impactos em seus negócios. Além disso, o país asiático cortou os juros dos mecanismos de financiamento em 0,25% para reduzir os custos para as companhias e três bancos públicos disponibilizarão 350 bilhões de yuans em empréstimos especiais com juros baixos para pequenas empresas privadas. Os impostos de empresários serão reduzidos de 3% para 1%. Até mesmo nos EUA haverá o pagamento de mil dólares mensais para cobrir os gastos dos trabalhadores que necessitarem permanecer em isolamento.

A Alemanha, onde o vírus apresentou a menor taxa de mortalidade, o vice-chanceler prometeu usar ‘tudo o que temos’ para combater o impacto do surto.

Casal é visto caminhando próximo ao Portão de Brandemburgo, em Berlim (foto: Odd ANDERSEN / AFP)

O país apresentou o maior pacote de providências que prevê desde dobrar a quantidade de leitos disponíveis em hospitais, que já é a maior do mundo (8 leitos a cada 1000 habitantes), até a suspensão de pagamentos de impostos e empréstimos pelas empresas, bem como expansão maciça de empréstimos de bancos estatais, onde a taxa de juros pode ser controlada. O primeiro ministro ainda afirmou o objetivo seria um escudo protetor abrangente sobre trabalhadores e empresas, para que nenhum emprego seja perdido.

Dadas as particularidades de cada país, é evidente a preocupação de seus chefes de estado em proteger a relação social de trabalho, onde o governo se responsabiliza por prejuízos imediatos que as empresas possam sofrer, visando a manutenção do emprego, sem grande ônus ao trabalhador.

A MP 927 do governo brasileiro

No caso brasileiro, sobretudo após a edição da Medida Provisória 927/20, pelo presidente Jair Bolsonaro, não há possibilidade de argumentar que o governo está preocupado com a ordem social ou a manutenção da relação de emprego. O texto aprovado basicamente castiga o trabalhador, esperando que a classe pague todo o prejuízo causado, como se apenas empresários fossem vetores relevantes na relação de produção e consumo. Em contrapartida, o pacote de maldades já está em pleno vigor.

Dentre as mediadas, está a previsão de corte de 25% a 50% nas indenizações, em caso de demissão por motivo de “força maior”, antecipação de férias, férias coletivas e uso do banco de horas, a suspensão do pagamento do fundo de garantia por tempo de serviço por até 3 meses. Chama a atenção a autorização para empregado e empregador celebrarem acordos individuais que terão preponderância sobre os demais instrumentos normativos e negociais, contrariando a Constituição.

Para especialistas, a MP é considerada tímida em sua repercussão econômica e onera em demasia os trabalhadores, enquanto é vendida enganosamente como medida anti desemprego.

Apesar de revogada a disposição que permitia a suspensão do contrato de trabalho, e consequentemente a remuneração do empregado por até quatro meses, após desastrosa repercussão entre a população em geral, já aguarda-se há uma semana o resultado da reunião de técnicos do Ministério da Economia no Palácio do Planalto que discutiam os detalhes de uma nova MP, que deve sanar os erros desta primeira.

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes (Foto: Isac Nóbrega/PR)

O momento social-econômico é de grande relevância mundial, pois não se pode admitir, nem tampouco se tolerar, que medidas sejam tomadas apenas para beneficiar empresas e corporações em detrimento de toda a classe trabalhadora, que necessita de incentivos econômicos e fiscais para permanecer em casa. Caso contrário, além de ficarem submetidos a expor e a colocar em risco sua saúde pessoal e familiar, o farão àqueles na comunidade em geral.

Com base neste pensamento e dado o vácuo de diretrizes deixado pelo presidente, o espaço foi parcialmente ocupado pela Câmara de Deputados. Como medida extraordinária, os líderes da oposição propuseram a criação de um programa de renda básica para as famílias mais pobres, enquanto durar a situação de urgência provocada pela pandemia. O texto apresenta-se como uma solução plausível e honrosa, pois segundo orientações de Juan Pablo Bohoslavsk, especialista independente das Organizações das Nações Unidas, “estímulos fiscais e pacotes de proteção social direcionados aos menos capazes de lidar com a crise são essenciais para mitigar as consequências devastadoras da pandemia”.

É preciso voltar a lembrar que a finalidade do Estado e das empresas em geral é de prestar serviços à população contribuir ao bem social, e não o contrário.

O texto aprovado na Câmara, prevê o pagamento de auxílio emergencial no valor de 600 reais a pessoas de baixa renda e de 1200, para casos em que a mãe é a chefe de família. Apesar de ser um valor abaixo do que a nossa Constituição define como mínimo para garantir a uma família viver com dignidade, pode representar o início de uma discussão humanitária sobre a crise na política nacional.

Ao explicar o texto, o deputado Marcelo Freixo (Psol-RJ) disse que a oposição propõe uma alternativa ao viés do governo, que, segundo ele, está muito voltado para a economia. “A oposição entendeu que a pauta prioritária é a renda das famílias mais vulneráveis”.

O momento exige a prevalência dos direitos humanos, de modo que a utilização de recursos e reservas econômicas nacionais e/ou, caso necessário, a mobilização de ajuda de organizações humanitárias e cooperações internacionais, garantam recursos para contribuir ao efetivo combate a pandemia do COVID-19. Ocorre que mesmo estas medidas precisam ser solicitadas ou aprovadas pelo inerte governo Bolsonaro. O projeto de lei ainda precisa ser votado no Senado e, posteriormente, seguirá para sanção presidencial, o que nos joga em um abismo de incertezas.

O que há de certo até agora é que a pandemia demonstra o dinamismo das relações econômicas, já que o panorama de recessão e ajuste fiscal, que até ontem era aplicado globalmente, passou a ser uma roupa que já não nos serve mais. Os melhores resultados em preservação de vidas foram apresentados em países que folgaram os cintos para enfrentar o COVID-19.

Se tivermos mais juízo do que sorte, quem sabe Paulo Guedes abre mão de sua política neoliberal ultrapassada, e o coronavírus acabe por sepultar o discurso pronto de que é com retirada de direitos socias que a economia voltará a crescer. Já há bons exemplos a serem seguidos.

Brecht já nos alertou que há muitas maneiras de matar: ‘Podem enfiar-lhe uma faca na barriga/ Tirar-lhe o pão / Não tratar de uma doença / Enfiá-lo numa casa insalubre / Empurrá-lo ao suicídio / Torturá-lo até à morte pelo trabalho / Levá-lo à guerra”. É inadmissível que só algumas destas formas sejam proibidas em nosso país.

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