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Visibilidade Trans: a abjeção, o invisível e o parlamento

A visibilidade Trans precisa ser também compreendida como um momento de direcionar os olhares às vidas e à força das populações T.

Foto: Reprodução/Facebook
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Hoje celebramos o dia da Visibilidade Trans. A data alude ao dia 29 de janeiro de 2004, quando homens e mulheres trans e travestis foram até o Congresso Nacional com a campanha Travesti e Respeito, pautando a visibilidade das vidas trans e a promoção da cidadania desses corpos.

Qual é o corpo das pessoas Trans e travestis? Sim, esta é uma pergunta que deve ser feita, sobretudo hoje. É preciso sempre pensar quais os sentidos que atravessam o termo “visibilidade”, que pode causar certa confusão interpretativa e fazer supor que pessoas trans, travestis e transexuais sejam invisíveis e que seus corpos e identidades não sejam vistos ou percebidos, um fenômeno, chamado “hipervisibilidade invisível”, que nos atinge coletivamente. O conceito é da filósofa e ativista anti-gordofobia uruguaia Magdalena Pineyra acerca dos corpos gordos.

Tomo aqui a liberdade de aplicá-lo também às pessoas Trans e travestis, uma vez que nosso corpo é explicitamente marcado pela diferença e permeado por uma infinidade de estigmas. Somos hipervisíveis, porque sobre nós recai incessantemente o olhar corretivo da normalização, o olhar patologizante da medicina e tantos mais.

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É comum ouvirmos, em todos os lugares, associações entre a população T e a perversão, a sujeira, a imoralidade.

É como se, quando se trata de nós, a vida estivesse previamente findada, seja no abandono familiar, seja no intenso desreconhecimento do Estado. A esse conjunto de estereótipos, que saltam aos olhos no instante exato em que um corpo T é visto, podemos chamar de “estigma”, que nas palavras do sociólogo Erving Goffman significa:

Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos. Mais tarde, na Era Cristã, dois níveis de metáfora foram acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de graça divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico. Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal. (GOFFMAN, 2004)

Lembro quando disse à minha avó que eu era uma mulher e ela logo pensou: “mas vai se prostituir?” Foi essa uma das suas primeiras preocupações. As que vieram em seguida diziam respeito a “quero que você tenha um bom futuro” e “que você seja alguém”. Neste contexto, fica claro: ser uma mulher trans, aos olhos da cis-heteronorma, é ser um “ninguém”. Uma manifesta ausência de humanidade. A filósofa judia Judith Butler chama esse processo de não ser nada, de corpo abjeto, ou seja, um corpo que está à margem, monstruoso, que perdeu sua condição de sujeito.

Um corpo que perdeu a condição de sujeito? Mas como assim, Helena? Você está enlouquecendo! Corpos são corpos. Sujeitos são sujeitos. Não, não é assim. É por meio do corpo que nos inserimos no mundo. E não é qualquer corpo que se insere, é um corpo marcado, lido, entendido, significado e ressignificado pela cultura. Um corpo sexuado e sexualizado. Nesse sentido, nossa cultura cria e desenvolve um ideal de corpo. Aquilo que Foucault chamou de corpo utópico. Um corpo são, em constante trânsito, mas agarrado a sustentáculos de ordem.

E de que ordem estamos falando? Da ordem cisgênero e heterossexual que, desde cedo, cria corpos para cumprir funções produtivas e reprodutivas, como se elas fossem inatas e, naturalmente, inquestionáveis. Consequentemente, qualquer corpo, qualquer identidade que ultrapasse essas funções tão bem delimitadas das normas de gênero é entendido como abjeto, desviante, inumano.

Para os corpos abjetos há apenas um lugar. Assim como nos antigos contos de fadas e histórias de terror (em que o monstro deve ser perseguido e mantido fora da convivência humana), os transgressores de gênero – as travestis – são condenadas à marginalização. Devem viver longe dos seres de bem, asiladas em ruas escuras e muquifos onde não possam ser vistas. Faça o teste e nos diga: quantas travestis você vê à luz do dia? Quantas vê a noite? Perceberá que são poucas as que serão vistas de dia. Somos condenadas à existência na margem, a existência subalterna do monstro de Mary Shelley.

Entretanto, o corpo abjeto das pessoas Trans e Travestis é ainda alvo de um paradoxo. Ao mesmo tempo em que deve ser ocultado, ele surge como corpo público, da conta e do domínio de todos.

É sobre o corpo que perguntam “você tem pau?” e se sentem no direito de pedir, como recentemente me pediu um amigo: “posso tocar no seu peito depois que você colocar silicone? Tenho curiosidade”.

É um corpo que é frequentemente exposto, revirado, medido, catalogado e esmiuçado. E tudo isso, justamente, porque não somos sujeitos. Somos sub-sujeitos. Abjeções. Transgressoras. Alguns podem dizer que eu exagero, que a curiosidade é normal. Ora, veja só, alguém costuma perguntar às mulheres cis como são suas genitais? Alguém costuma pedir, do nada, para tocar em seus seios, apenas para saber se é “normal”? Não. Então, é claro que uma situação como essa não passa de uma forma de transfobia, ou seja, de violência.

Essa curiosidade é objetificadora e perversa. Ela nos transforma em seres de zoológico. Perigosos, mas que podem ser exibidos, de vez em quando, para saciar a vontade dos humanos superiores, dos normais.

Que fique claro: o corpo da travesti não é “naturalmente” abjeto. Ele é convertido em abjeção pela cis-heteronorma. Ou seja, o sistema de gênero, que classifica os corpos segundo o arbitrário parâmetro genital (que exclui pessoas intersexo), não é nada além de um sistema de controle biopolítico, uma forma de exercer poder sobre os corpos.

As noções de masculinidade e feminilidade são apenas interpretações que aprendemos a atribuir aos dados naturais que, por si só, não são nada. O gênero é uma categoria que tenta determinar como devemos existir e nos sentencia a existir apenas de uma forma. Só é possível existir no mundo possuindo um gênero? Ser homem ou mulher é realmente a coisa mais importante em relação a alguém?

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Não se trata, portanto, de dizer apenas que sejamos invisíveis, mas de interrogar as formas de visibilidade e sobretudo os olhos que nos fitam. Neste sentido, então, as possibilidades de construir isso a que temos chamado de “Visibilidade Trans” estão também em disputa, por um lado parece ser sempre necessário rememorarmos os processos de violência e as imensas vulnerabilidades as quais as pessoas Trans e travestis estão submetidas.

Contudo, há sempre o risco de que nossas narrativas sejam contadas como grandes tragédias, de fazer parecer que ser Trans ou travesti foi a pior das coisas que ocorreu em nossas vidas. Neste sentido, a visibilidade Trans precisa ser também compreendida como um momento de direcionar os olhares às vidas e às forças de viver das populações T. Sua produção artística, participação na política, sua cotidianidade, família e aspectos que revelam as delícias de nossas existências.

***

Considero que a Visibilidade Trans deste ano é única e as razões são muitas. Em primeiro lugar, porque o acirramento do conservadorismo e da extrema direita, representados pelo fenômeno bolsonarista, ataca direta e frontalmente as vidas das pessoas transexuais e travesti.

Desde a eleição do ex-deputado Jair Bolsonaro para a Presidência que um clima de medo se propaga entre LGBTs em geral e pessoas Trans em específico. Contudo, desde então temos visto a eleição de pessoas Trans para diversos cargos no Legislativo. Nestas últimas eleições municipais, foram muitas as vereadoras transexuais e isso parece ser uma grande lufada de futuro, que se abre pra nós.

Mas, a visibilidade tem também seu ônus, não é? A condição abjeta do corpo trans se manifesta ainda nos espaços formais da democracia, como o Parlamento.

Erika Hilton, vereadora de São Paulo, mulher Trans e preta, tem sido alvo de ameaças nas redes sociais e também em seu gabinete.

Na quarta-feira 27, ela recebeu ameaças e foi perseguida dentro do seu próprio gabinete: um homem vestido de símbolos religiosos entrou lá e a procurou. Como não conseguiu, deixou apenas uma carta em que dizia conhecer a vereadora e que ele trabalhava como garçom no restaurante Círculo Militar, que fica nas proximidades da Assembleia Legislativa.

O homem foi uma das cinquenta pessoas processadas por Erika Hilton no início do ano por injúrias racistas e transfóbicas. Na mesma semana, a covereadora Carolina Iara, travesti negra que compõe o mandato coletivo Bancada Feminista do PSOL, teve sua casa alvejada por tiros.

Duas parlamentares Trans foram alvos de violência, ameaças e coerção neste ano e tudo isso revela o caráter estrutural e perverso da transfobia. Afinal, qual o lugar dos corpos trans?

*Helena Vieira é transfeminista, escritora e dramaturga. Atualmente, é assessora para a Cultura da Diversidade da Escola Porto Iracema das Artes.

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