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Visibilidade Lésbica em tempos de barbárie

Em tempo de retrocesso e da barbárie do governo Bolsonaro, uma vida fora do armário pode ser até inviável para algumas mulheres lésbicas

Paulo Pinto/FotosPublicas
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29 de Agosto é o Dia da Visibilidade Lésbica, no qual nós, mulheres lésbicas, temos motivos para comemorar, resistir, lutar, amar e chorar.

É dia também de afirmar a construção de narrativas que representam a diversidade de existências e resistências no nosso país e em todo o mundo, na contramão de uma forma de comunicação hegemônica, centrada majoritariamente em uma perspectiva heterocentrada, que silencia vozes, corpos e modos de vida. A visibilidade lésbica desempenha um papel crucial que coloca em xeque o modelo de comunicação dominado apenas por poucos grupos e corporações, tanto na mídia tradicional, quanto nos meios digitais. Falar em visibilidade lésbica é também reivindicar o direito à comunicação.

 

Diariamente, nós lidamos com diversas opressões como a lesbofobia, racismo, machismo e outras. Nossos corpos são vistos como não humanos pela sociedade formada pelo hetero-patriarcado-cis-branco-europeu.

Por causa dos papéis de gênero criados pela socialização heteronormativa, uma mulher que ousa amar outra mulher e se relacionar com ela afetiva-sexualmente é vista como errada, como não humana, não digna de ter os seus direitos garantidos e até mesmo de existir.

E quando estamos falando de mulheres negras e lésbicas, o peso de existir pode ser ainda maior devido ao racismo. Essas corpas precisam lidar ainda com a possível solidão afetiva por não estarem dentro dos padrões de um corpo digno de receber amor: o corpo branco e magro (dentro dos padrões europeus coloniais de beleza).

Se, por um lado, essa lésbica negra precisa lidar com o machismo e a lesbofobia dentro do próprio movimento lésbico, essa corpa precisa ainda lidar com o racismo de suas companheiras brancas, que ainda não entenderam que a luta contra a lesbofobia está alinhada à luta antirracista.

É preciso descolonizar nossas corpas, afetos e pensamento, entendendo que ser lésbica é diverso e precisamos respeitar e acolher todas essas diferenças, de forma que não ocorra opressão entre as nossas.

O rompimento da autorização discursiva

Com o avanço da tecnologia e a criação das redes sociais, muitos grupos sociais considerados “minorias” pelos grupos dominantes encontraram uma forma de construir suas próprias narrativas, rompendo com a história única.

Quem antes não tinha a oportunidade de falar nos espaços tradicionais de mídia conseguiu, não apenas falar, mas ampliar sua voz na internet juntando suas narrativas pessoais às narrativas coletivas.

Com nós, lésbicas, não foi diferente. Assim como eu que tenho um canal no YouTube chamado Sapatão Amiga, onde conto sobre minhas vivências como mulher negra e lésbica, outras iniciativas surgiram para fazer resistência à narrativa construída pela mídia hegemônica, que até então contribuiu para o apagamento lésbico.

Se em nosso país a comunicação está nas mãos de pequenos grupos da elite social, porque não aconteceu até hoje uma redemocratização da mídia, é preciso construir nossa própria comunicação para contar a nossa história.

Esse desafio depende também, no entanto, do enfrentamento ao mesmo processo de concentração que ocorreu com os demais meios de comunicação e se reproduz na internet, trazendo consigo características de controle e vigilância de nossos corpos e produções. Embora a internet tenha se desenvolvido com a promessa de democratizar o acesso ao conhecimento e o exercício da liberdade de expressão, com o tempo fica cada vez mais evidente a reprodução de um mesmo modus operandi de concentração de poder e de decisões sobre o conteúdo produzido. (Mais informações no estudo do Intervozes Monopólios Digitais, disponível aqui.

A Revista Brejeiras também vem nesse contraponto às narrativas hegemônicas hetero-patriarcal. É uma revista feita por lésbicas e para lésbicas, uma comunicação sapatão ativista que soma a luta dos movimentos sociais de mulheres lésbicas pelo Brasil afora.

A construção de uma comunicação sapatão também contribui, não apenas  para o surgimento de novas narrativas, mas também para representatividade de um grupo social que sempre sofreu apagamento e muitas vezes se viu sozinho em vários espaços.

Visibilidade contra o apagamento e lesbocídio

Além disso, ainda precisamos enfrentar o apagamento dentro do movimento LGBTQ, que quase sempre lembra da nossa existência apenas no mês da visibilidade lésbica. Esse apagamento também acontece dentro do movimento feminista, que muitas vezes nega a pluralidade do ser mulher, embora muitas lésbicas tenham estado presentes em momentos importantes de luta junto com as mulheres heterossexuais.

Em tempos de retrocessos e da política da barbárie do governo Bolsonaro, uma vida fora do armário pode ser até inviável para algumas lésbicas. Infelizmente, sair do armário ainda é um privilégio em nossa sociedade. Principalmente se você é uma mulher lésbica favelada/periférica fora do eixo Rio de Janeiro- São Paulo.

Andar na rua de mãos dadas com sua companheira, demonstrar afeto em público, se assumir lésbica no ambiente de trabalho, circular por certos locais da cidade, usar banheiros públicos e ter acesso de forma digna a consultas médicas ao ginecologista significa perigo, discriminação, assédio ou até morte para muitas de nós. E não apenas a morte física, mas também a morte diária quando precisamos voltar pro armário às vezes por questões de segurança.

A lesbofobia é estrutural, ela faz parte da formação social do Estado, no qual só são considerados humanos aqueles que estão dentro da heteronorma: homem, cisgênero, branco, heterossexual, classe média alta e cristão. Inclusive as mulheres cisgênero-branca- heterossexuais encontram opressões, como por exemplo a criminalização do aborto que tira todo o direito de escolha da mulher sobre o próprio corpo.

Em tempo, num governo que tira a população LGBT dos direitos humanos, defende que “menina veste rosa e menino veste azul” e fala que o celibato é uma forma de proteção contra infecções sexualmente transmissíveis, como ficam as lésbicas nessa história?

A visibilidade lésbica vem como um grito de resistência contra esse governo da barbárie que tem como política para nós a necropolítica (política da morte). Seremos resistência contra a militarização da vida e o controle sobre nossos corpos.

Por uma comunicação sapatão, antirracista e contra a militarização da vida. Seguimos sendo resistência a esse governo fascista.

Dedico esse texto às minhas ancestrais negras e lésbicas que vieram antes de mim e lutaram para que hoje eu esteja abrindo caminho coletivamente para as próximas que virão depois de mim. E às que caminham comigo: Rosângela Castro, Michele Seixas, Fátima Lima, Revista Brejeiras e tantas outras, porque eu não ando só.

Avante, sapatonas!

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