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Riscos à democracia: Google e o controle da informação

Compreendermos como funcionam os algoritmos que controlam o fluxo de informação nas grandes plataformas globais é cada vez mais urgente

Youtube Cafe - Foto: Google/Divulgação
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*Por Flávia Lefèvre Guimarães

Enquanto a pandemia da covid-19 causa milhares de mortes pelo mundo, levando a uma crise sanitária sem paralelos recentes, pipocam no YouTube dezenas de vídeos defendendo remédios milagrosos para a cura da doença ou de cunho negacionista. Com profunda penetração no universo de internautas, os conteúdos que podem ou não circular pela plataforma passam pelo crivo exclusivo da empresa comandada pela Google. Sem nenhuma transparência sobre os algoritmos que alavancam notícias falsas e teorias da conspiração, já passou da hora de falarmos sobre a influência das empresas de tecnologia na esfera pública de debate.

A Google, empresa americana que está entre as cinco mais valiosas do mundo, conta com mais de 1,3 bilhões de usuários. No Brasil, 95% dos internautas utilizam seu mecanismo de busca. Já o YouTube recebe a cada minuto cerca de 300 horas de vídeos, com 5 bilhões deles visualizados a cada dia, segundo dados divulgados pela própria empresa em janeiro de 2019. Com 120 milhões de usuários no Brasil, o YouTube só perde para a Rede Globo em termos de audiência. É evidente o poder de interferência determinante dos mecanismos de controle do fluxo de informações dessas plataformas. Sendo assim, é fundamental entendermos muito bem como funcionam os mecanismos de gerenciamento de conteúdos que a empresa utiliza.

Desde abril de 2017, a Google informou que passaria a adotar práticas voltadas para dificultar o acesso a conteúdos que denominou de “notícias de baixa qualidade”, explicando que estava calibrando seus algoritmos para reduzir a visualização de notícias que classificava como “fake news e teorias da conspiração”. Ou seja, a empresa passou a estabelecer categorias embasadas em critérios com alto grau de subjetividade e, segundo informou, passou a considerar como mídia confiável as empresas jornalísticas tradicionais e dominantes para balizar seus algoritmos.

O efeito imediato desta prática foi uma redução drástica de acessos a sites alternativos e de esquerda, de acordo com dados levantados no Alexa Analytics pelo World Socialist Web Site (WSWS). O site da WSWS teve naquele ano queda de 67% no número de visitantes vindos da busca do Google; Alternet, 63%; Democracy Now, 36%; Wikileaks, 30% e o The Intercept, 19%. Propositadamente ou não, o fato é que as práticas adotadas pela plataforma resultaram na censura a conteúdos de natureza política, com a redução do debate entre posições plurais.

Ainda que no Brasil não tenhamos realizado o levantamento feito pela WSWS nos EUA, vale lembrar que em 2017 estávamos no auge da Operação Lava Jato em oposição aberta aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Partidos de esquerda e progressistas defendiam a tese do golpe institucional que levou ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Mas a narrativa uníssona da mídia hegemônica era de que esta tese se configurava como “teoria da conspiração”. As narrativas contra-hegemônicas foram silenciadas com consequências políticas determinantes para o Brasil, como vieram a retratar recentemente diversos documentários sobre aquele momento da nossa história.

A partir de 2019, tivemos as revelações da Vaza Jato, promovida pelo The Intercept Brasil, mostrando que a conspiração de fato ocorreu, com a prática de ilegalidades graves, contando com o envolvimento das mais altas instituições brasileiras e com influência decisiva nos resultados das eleições de 2018.

Assim como o mecanismo de busca da Google, o YouTube informou que passou a utilizar algoritmos para identificar determinados conteúdos, seguindo os mesmos critérios citados anteriormente, para recomendar ou reduzir a visualização e também remover vídeos da plataforma. Esta prática tem sido fortemente criticada por diversos usuários desse serviço e produzido efeitos bem distintos daqueles previstos pela empresa.

Casos

Um caso exemplar e bastante importante é o da Ponte Jornalismo, organização que defende os direitos humanos buscando a aproximação de atores das áreas de segurança pública e da justiça, com vistas à defesa da democracia no país.

A entidade vem travando embates frequentes por conta de remoções unilaterais de diversos vídeos postados no YouTube, caso já abordado neste blog, a ponto de entidades representativas do jornalismo como a Associação Brasileira de Jornalismo (ABRAJI) e a Federação Nacional de Jornalismo (FENAJ), em outubro de 2019, terem direcionado à Google manifestações se opondo às práticas de remoção de conteúdos que, no mais das vezes, ocorrem sem prévio aviso. O usuário da plataforma que tem seu conteúdo removido toma conhecimento depois da remoção e só depois se abre a oportunidade de contestação.

Vale destacar que muitas dessas remoções acontecem com base na ferramenta denominada Content ID, desenvolvida para oferecer aos poderosos titulares de direitos autorais, como as empresas de TV, um mecanismo de remoção imediata de vídeos que coincidam com a base de conteúdos depositada no sistema do YouTube para controle em benefício das emissoras.

Não se discute aqui a legitimidade e a importância da defesa do direito autoral. Todavia, este direito tem sido frequentemente usado como uma justificativa enviesada e discriminatória para que o YouTube realize verdadeira censura vedada tanto pela Constituição Federal quanto pelo Marco Civil da Internet, sem observar as prerrogativas expressas na Lei de Direito Autoral, que autoriza o uso de trechos de obras, inclusive as audiovisuais, para menção ou ilustração.

O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, assim como outras tantas entidades e muitos youtubers, vem enfrentando dificuldades por causa de remoções de vídeos com críticas à abordagem de programas de TV com vistas à defesa de direitos dos idosos, questões de gênero, da população negra, entre outros direitos fundamentais. A organização contestou junto à Google as remoções, mas prevaleceu o acordo comercial entre a plataforma e as TVs, o que levou a entidade à judicializar o conflito.

Também o Ministério Público Federal, em junho de 2019, abriu procedimento preparatório para apurar os critérios para remoção e indisponibilidade de vídeos e canais na plataforma. O tema despertou o interesse do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD), que realizou estudo analisando 241 mil vídeos postados entre 2009 e 2019 pelas casas legislativas federais e estaduais no YouTube e constatou que a plataforma utiliza esses sites indicados como canais com credibilidade para, no sistema de recomendação e reprodução automática, recomendar outros vídeos que disseminam desinformação, discurso de ódio e fake news.

Deveria estar no foco das autoridades competentes, portanto, as práticas adotadas pela Google que, ao fim e ao cabo, atuam como controlador do fluxo de uma volumosa quantidade de informações com poder de influência nos campos políticos, culturais, dos direitos sociais e da saúde.

Assistimos nas eleições de 2018 campanhas de desinformação expressas por diversos vídeos postados no YouTube disparados para milhões de eleitores pelo WhatsApp, com o objetivo de influenciar opiniões políticas, com a exploração de dados pessoais e vulnerabilidades dos milhões de usuários desses serviços.

É urgente, então, neste momento em que borbulham projetos de lei com vistas a definir regras para o gerenciamento de conteúdos na Internet pelas plataformas, ampliarmos os debates a respeito do tema. É necessário dar atenção especial para as empresas dominantes, como é o caso da Google, nos serviços que exploram, sob pena de fragilizarmos o direito ao livre fluxo de informação, a liberdade de expressão, os direitos políticos e a democracia brasileira.

*Flávia Lefèvre é advogada, integrante do Intervozes e representante do Terceiro Setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil.

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