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Recife anuncia rastreamento de cidadãos com câmera em ônibus

Reconhecimento Facial no Transporte Público da cidade preocupa pelos riscos à privacidade e a outros direitos fundamentais

Em Recife, passageiros serão fotografados seis vezes no momento em que entrarem em um ônibus
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Por Eduardo Amorim e André Ramiro

Na atual conjuntura, em que o presidente eleito promete acabar com todo tipo de ativismo, perseguir a oposição e os movimentos sociais, a política de monitoramento e controle no sistema de transporte público na região metropolitana do Recife merece atenção.

Não bastassem problemas relacionados à segurança, desconforto e lotação, atraso em mais de três anos na implantação do sistema de monitoramento dos ônibus (levando o Ministério Público a abrir inquérito civil), a rede pública de transporte está agora prestes a integrar um questionável sistema tecnológico, com potencial de violação dos direitos dos usuários.

Em Pernambuco, o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Pernambuco (Urbana-PE) anunciou a aquisição de novo sistema para a validação do acesso ao ônibus no Grande Recife. O passageiro que fizer uso de bilhetagem eletrônica VEM (Vale Eletrônico Metropolitano)  para acesso gratuito será validado por meio de reconhecimento facial.

No entanto, embora anuncie rapidez na validação da identidade, em comparação à atual (biometria digital), e um potencial em evitar fraudes de uso do cartão, a medida merece críticas à luz das proteções às liberdades fundamentais do usuário, sobretudo a proteção aos dados pessoais e à privacidade.

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Segundo informações divulgadas, os passageiros serão fotografados seis vezes no momento em que entram no ônibus. Sendo assim, aponta a empresa, é possível inferir que, mesmo que o passageiro não seja usuário da bilhetagem eletrônica, ou seja, pague passagem de forma avulsa, será também monitorado. Logo, a tecnologia extrapolaria, dessa maneira, o público inicial para o qual está destinada. Atualmente, cerca de 985.000 pessoas fazem uso do serviço da Urbana-PE.

Impactos à privacidade de dados

A inserção de tecnologias de reconhecimento e rastreamento carrega grandes chances de causarem impactos à privacidade dos cidadãos e cidadãs. Bancos de dados construídos às custas de informações fornecidas sem consentimento ou, até mesmo, conhecimento dos titulares dos dados podem ser utilizadas para uma diversidade de aplicações, desde o compartilhamento com setores de inteligência dos Estados, enriquecendo um aparato de vigilância em massa, até vendidos a empresas privadas, o que pode caracterizar desvio em relação às finalidades iniciais.

Informações visuais sobre nós podem ser somadas a dados sobre endereço, histórico bancário, score de crédito, histórico de internet, interesses, opiniões, dentre uma infinidade de rastros que produzimos. O reconhecimento facial aprofunda ainda mais essas questões, agregando uma imagem facial a uma pessoa específica e dando margem a métodos de perfilamento, facilitando o mapeamento de grupos ideológicos ou políticos e, consequentemente, ameaçando a liberdade política, de expressão e opinião.

Uma série de entidades vêm divulgando inconsistências em tecnologias de reconhecimento facial. A União Americana pelas Liberdades Civis realizou teste de precisão com o software Rekognition, cruzando fotos de 25 mil criminosos com fotos de membros do congresso norte-americano. O resultado indica que 28 dos congressistas, em sua maioria negros, foram confundidos com os criminosos.

Ainda, estudo recente do MIT (Massachussets Institute of Technology) aponta que o reconhecimento facial de mulheres negras, por exemplo, possui baixa eficácia quando comparado ao de homens brancos, envolvendo softwares de biometria facial de ponta, entre eles o da IBM e o da Microsoft.

Vale lembrar que o tratamento de dados pessoais deve estar respaldado nas bases legais, ou seja, permissões estabelecidas em lei. E o consentimento é elemento central, condição primária para garantir a privacidade do indivíduo, porque lhe confere poder de escolha de forma livre, informada e inequívoca.

Ao que parece, no contexto da biometria facial nos ônibus do Recife, o usuário não poderá determinar quais informações sobre si serão colhidas, como e com quais objetivos serão tratadas e, até mesmo, se opor ao tratamento de seus dados. O serviço de reconhecimento, já em operação em algumas linhas da Região Metropolitana do Recife, não possui sequer política de privacidade publicizada e disponível aos usuários. A PRODATA Mobility e a Urbana-PE foram contactadas, mas, até a publicação deste artigo, não enviaram esclarecimentos aos autores.

Transparência é essencial

Além de informações de fácil acesso e atualizadas sobre o processo de coleta de dados, o poder público deve prover aviso prévio sobre a forma de coleta de reconhecimento facial, a finalidade da mesma e, por fim, informação sobre quando serão eliminados os dados. Formas de promover a transparência podem envolver a formulação de políticas de privacidades (via página na web, por exemplo).
 
Outras informações básicas devem estar disponíveis ao público. Os meios adotados para garantir um padrão de segurança razoável é uma delas. Estabelecer períodos de tempo razoáveis para o uso e previsão de descarte dos dados através de meios seguros são práticas que devem ser adotadas para minimizar riscos, acessos não autorizados ou vazamento de informações.

Além disso, apenas os dados mínimos necessários à execução do serviço devem coletados. Essas condições dependem de políticas públicas que devem ser discutidas continuamente e em diálogo com organizações interessadas, de setores pertencentes ao governo às organizações da sociedade civil, tendo em vista o impacto à privacidade de uma parcela considerável da população recifense.

Gestores públicos e privados devem estar atentos aos efeitos colaterais sobre o uso de tecnologias nas cidades e responder às questões aqui levantadas. Afinal, qual o volume de fraudes que justifique a implementação de tal sistema, custoso, e que ainda coloca direitos da população sob risco?

Os questionamentos acerca dos direitos dos usuários é ainda mais relevante quando se tem em conta o contexto já conhecido de monitoramento político. O então secretário de Imprensa do Governo do Estado, Evaldo Costa, chegou a admitir que 87 pessoas que faziam queixas nas redes sobre os problemas para chegar à Arena Pernambuco (estádio na periferia de Recife) eram monitorados pelo Governo do Estado, durante a Copa das Confederações, em 2013.

Em 2017, o bloco de Carnaval Empatando Sua Vista teve fantasias e o porta-estandarte apreendidos antes do desfile no sábado de Carnaval. O monitoramento dos carnavalescos teria acontecido através das câmeras de trânsito do município e da segurança pública do Governo do Estado.  

Mecanismos reguladores devem assumir o primeiro plano das políticas de modernização urbana e de segurança social. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, recém aprovada, serve de bússola ao desenvolvimento tecnológico associado à garantia de direitos fundamentais e sua aplicação é indispensável à implementação de mecanismos de reconhecimento facial. Do contrário, a hiperconectividade tornará a cidade um ambiente de controle e vigilância contínua dos cidadãos.

*Eduardo Amorim é doutorando em Comunicação pelo PPGCOM-UFPE e integra o Intervozes. André Ramiro é mestrando em Ciências da Computação na mesma universidade, e é diretor do IP.rec – Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife.

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