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“Quem quer dinheiro”: MiniCom volta a ser comandado por radiodifusor

Dez anos depois, MiniCom volta às mãos dos donos da mídia e pode resultar em desmonte ainda maior da EBC

O deputado federal Fábio Faria. Foto: Agência Câmara
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Por Helena Martins e Bia Barbosa*


Jair Bolsonaro anunciou, na noite desta quarta-feira 10, a recriação do Ministério das Comunicações, fundido com o da Ciência e Tecnologia durante a gestão Temer. A pasta foi entregue ao deputado federal Fábio Faria (PSD-RN), casado com a apresentadora Patrícia Abravanel, filha do empresário das comunicações Silvio Santos. Os laços familiares de Faria foram apresentados pelo presidente como credenciais positivas do novo ministro. Ao anunciar a Medida Provisória que separou o MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), Bolsonaro disse: “Vamos ter alguém que não é profissional do setor, mas tem conhecimento até pela vida que tem junto à família do Silvio Santos”. 

O que o presidente não mencionou – ou talvez nem tenha se preocupado em saber – é que o suposto conhecimento de Faria sobre o setor deriva não só de parentesco, mas porque ele próprio é radiodifusor. Deputado há quatro mandatos, Fábio Faria é um dos 26 membros da atual legislatura que controlam diretamente outorgas de rádio e televisão, de acordo com levantamento publicado pelo Intervozes em 2019. É um dos sócios e o administrador da Rádio Agreste Ltda., fundada em 1997 por seu pai, Robinson Faria, ex-governador do Rio Grande do Norte. 

Desde 2015, o ministro é um dos citados na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) elaborada pelo Intervozes e protocolada pelo PSOL junto ao Supremo Tribunal Federal que pede, entre outros pontos, a devolução ao Estado de outorgas de radiodifusão controladas por deputados federais e senadores, em respeito ao artigo 54 da Constituição. 

Para Bolsonaro, nada mais convencional. Como afirmou o presidente, “a intenção é essa: utilizar e botar o Ministério pra funcionar nessa área que estamos devendo há muito tempo uma melhor informação”. Mas o que significa “funcionamento” para o presidente? 

Além de agradar o chamado Centrão com a destinação de mais um cargo no alto escalão – cuja fatura será cobrada na votação de um possível processo de impeachment contra Bolsonaro e na aprovação de matérias de interesse do governo –, com a entrega da pasta para um radiodifusor ligado ao SBT, ele afaga também a parcela da mídia nacional que tem produzido uma cobertura favorável ao governo em meio à crise política e sanitária do país. 

Como mostramos aqui no blog e não é segredo para ninguém, o SBT, do sogro do ministro, está no rol das emissoras que não apenas apoiam o discurso do presidente contra o isolamento social em meio à pandemia mas que também chancelam o modo bolsonarista de governar, como comprovou a cobertura sobre a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça.

Outorgas e verbas publicitárias

A recriação do MiniCom no modelo bolsonarista vai além, entretanto, da velha prática de entregar a pasta aos radiodifusores para que o setor gerencie as outorgas de acordo com seus interesses comerciais. O novo Ministério vai incorporar também a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), que antes ficava subordinada à Presidência da República. Fabio Wajngarten, que dirigia a Secom, agora virou Secretário-Executivo do MiniCom. Não deveria ser necessário, mas cabe lembrar que uma pasta que deveria desenvolver políticas públicas, de Estado, para o setor das comunicações não deveria se misturar com o órgão responsável por fazer a assessoria de imprensa e cuidar da propaganda do governo. O novo desenho institucional vai piorar ainda mais o quadro de abuso na distribuição das receitas publicitárias do Planalto, que vem sendo denunciado desde o início do governo Bolsonaro.

Em relatório publicado em 2019, o TCU (Tribunal de Contas da União) indicou que Bolsonaro destinou maiores percentuais de verbas publicitárias para a Record e o SBT, seguindo o exemplo de seu antecessor, Michel Temer. A parcela do bolo publicitário destinado à Record passou de 26,6%, em 2017, para 31,1% em 2018 e 42,6% em 2019. No mesmo período, a do SBT cresceu de 24,8% (2017), para 29,6% (2018) e 41% (2019). 

Pelo que indicam as ações governamentais, esse montante, desejado por emissoras que enfrentam uma crise financeira, deve aumentar. Indício disso foi o anúncio da retirada de mais de R$ 83 milhões do programa Bolsa Família para destiná-los à comunicação institucional da gestão, a cargo de Wajngarten. A medida foi revogada esta semana, depois de críticas. 

Com a incorporação da Secom ao novo MiniCom, caberá à dupla de Fábios a decisão sobre o futuro da EBC (Empresa Brasil de Comunicação), alicerce nacional do sistema público de comunicação, previsto na Constituição, cuja privatização já foi anunciada por Bolsonaro. Desde o governo Temer,  que modificou a lei que criou a empresa, fragilizando seu caráter público, a EBC sofre ameaças de extinção. Os frequentes ataques, perpetuados na gestão Bolsonaro, levaram organizações da sociedade civil a denunciar o desmonte da comunicação pública e as sucessivas práticas de censura aos jornalistas da EBC à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em março deste ano

Agora, contrariando uma vez mais nossa Carta Magna, que diz que o sistema de comunicação brasileiro deve ser complementar entre meios públicos, privados e estatais, Bolsonaro delega ao ministro radiodifusor privado a extinção de uma empresa pública, o que pode eliminar a experiência tão necessária, ainda que incipiente, de uma comunicação que pretenda não lucrar, mas atender ao interesse dos cidadãos e cidadãs. 

A urgência de políticas públicas de comunicação

A recriação do Ministério das Comunicações seria importante para que o país pudesse ter ferramentas para voltar a desenvolver políticas públicas para um setor absolutamente estratégico no desenvolvimento da nação. Além da radiodifusão, cabe à pasta um amplo conjunto de ações no campo das telecomunicações. Uma das políticas que deveria ser prioritária neste momento é a da universalização do acesso à Internet, cada vez mais necessária em um momento de crescente demanda de banda larga para estudar, trabalhar e realizar boa parte das atividades devido à pandemia e ao isolamento social.

Na gestão Dilma Rousseff, o Brasil desenvolveu o Plano Nacional de Banda Larga, que possuía limites por se pautar mais pela lógica da massificação do acesso precário via internet 4G do que, de fato, por uma visão da essencialidade desse acesso – conforme previsão do Marco Civil da Internet. O Brasil deveria estar avançando nesse debate e no desenvolvimento de medidas para enfrentar o imenso abismo de conexão existente entre classes e regiões. No entanto, as políticas de inclusão digital não apenas foram abandonadas depois da extinção do MiniCom por Temer como seguem, com Bolsonaro, sem qualquer perspectiva de retomada. 

Também seguem longe das preocupações do governo questões igualmente relevantes, como a urgência de se proteger os dados pessoais da população. Até agora, Bolsonaro não criou a Autoridade Nacional de Dados Pessoais, prevista pela Lei Geral aprovada em agosto de 2018 pelo Congresso. Além de não criar a ANPD, Bolsonaro adiou uma vez mais a vigência da lei via medida provisória e, na contramão do que faz o mundo democrático, assina decretos e normas em clara violação aos princípios e regras da LGPD. 

A lista de prioridades de um Ministério das Comunicações que renascesse para cumprir seu papel incluiria ainda temas como transição para o 5G, o debate sobre Internet das Coisas, a sobrevivência dos Correios, o enfrentamento à desinformação, além de tanto outros problemas históricos e seguidas vezes ignorados pela pasta, como a violação sistemática de direitos humanos em vários programas de rádio e TV. São muitas as ações que o Estado deveria desenvolver para garantir não apenas o mínimo que é um ambiente comunicacional plural e diverso, mas também o direito à comunicação do conjunto da população. 

Moeda de troca histórica

Quando o MiniCom foi fundido ao MCTIC por Temer, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) manifestou preocupação quanto ao futuro da pasta. Para o Fórum, na época, a criação de um novo Ministério revelava “que o tratamento comercial e mercadológico para o tema da Comunicação” seria aprofundado. “Os debates serão ainda mais técnicos e estarão ainda mais à mercê dos grandes grupos econômicos”, disse a organização. Esse olhar à pasta, criada em 1967 e que sempre teve atribuições relevantes, foi o mesmo que marcou seu fechamento em 1990, durante o governo Fernando Collor, quando foi anexado ao Ministério da Infraestrutura e, depois, ao dos Transportes. 

O órgão voltou a ter autonomia em 1992, mas poucas vezes cumpriu suas tarefas a partir do reconhecimento do interesse público, tendo em vista a forte presença dos radiodifusores, sobretudo de representantes da Globo, no comando das políticas de comunicação, ainda que de forma indireta. 

Durante o governo Lula, dois dos ministros, Eunício Oliveira (janeiro de 2004 a julho de 2005) e Hélio Costa (julho de 2005 a março de 2010), ambos do PMDB, exploraram serviços de radiodifusão. Com Dilma Rousseff, os ministros da pasta foram o petista Paulo Bernardo (janeiro de 2011 a janeiro de 2015), Ricardo Berzoini (janeiro de 2015 a outubro de 2015) e André Figueiredo (outubro de 2015 a maio de 2016), que não possuíam vínculos com a radiodifusão. 

Uma vez mais, com Bolsonaro, o Brasil está dando tristes passos atrás na história. Não será agora que teremos um Ministério preocupado com a população e com a garantia de seus direitos. Nenhuma surpresa, diante de uma gestão que não se importa sequer com a perda de milhares de vidas. Mas é a velha política imperando, também nas comunicações, na mobilização que agrada políticos fisiologistas e a imprensa tradicional. Esta que, como diria Silvio Santos, apenas quer dinheiro. Até quando? 


* Helena Martins é jornalista, doutora em Comunicação e professora da Universidade Federal do Ceará. Bia Barbosa é jornalista e mestra em políticas públicas. Ambas integram o Conselho Diretor do Intervozes.

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