Intervozes

Novos discursos, o mesmo golpismo

Na semana em que a narrativa “pró-impeachment” se enfraquece, mídia impressa intensifica ações buscando a derrubada de Dilma

Mídia impressa pede saída da presidenta Dilma e minimiza apoio popular contra o impeachment
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Por André Pasti *

Na disputa de narrativas sobre a crise política, a última semana foi marcada por avanços contrários ao golpe. Diversas manifestações, falas de juristas, artistas e intelectuais, além de atos do próprio governo, conseguiram ampliar o alcance do discurso de que há um golpe em curso. O que caracteriza esse golpe é um impeachment sem crime de responsabilidade e uma atuação seletiva do judiciário, articulados pela grande mídia.

Os grandes meios de comunicação foram alvos centrais dessas manifestações, por estarem no comando desta articulação. Foram associados ao golpe e tentaram se desvencilhar dele, numa atualização dos discursos e dos ataques. Na mídia impressa, as intenções de derrubar o atual governo parecem estar ainda mais fortalecidas. No entanto, as estratégias discursivas se renovaram, como analisamos a seguir.

Revistas semanais sobem o tom dos ataques para pautar oposição

A revista Veja, após um combo de seis semanas seguidas com capas atacando o ex-presidente Lula, colocou em circulação novamente o caso do assassinato de Celso Daniel, com os dizeres “O cadáver da Lava-Jato”, dizendo que o caso é o que “mais assombra o PT”.

O próprio juiz Sérgio Moro fez circular a denúncia na sexta-feira, dia seguinte das manifestações antigolpe. Sem provas, o juiz disse ser “possível” que haja conexão entre os fatos investigados pela nova etapa da Operação Lava-Jato e o assassinato do ex-prefeito.

A Lava Jato alimenta os discursos da oposição por meio de sua articulação com a grande mídia. O papel mais importante ocupado pela mídia impressa nesse circuito é o agendamento das pautas, já que as denúncias das revistas e jornais são repercutidas, seletivamente, na televisão e internet.

Mas foi a revista IstoÉ quem fez o ataque mais incisivo (e pessoal) desse final de semana à presidenta Dilma. A capa trazia uma foto manipulada de Dilma com o título “As explosões nervosas da presidente” e no texto em destaque “Em surtos de descontrole […] Dilma quebra móveis do Palácio […] e perde (também) as condições emocionais de conduzir o país”.

A matéria “Uma presidente fora de si” traz uma mudança na narrativa de desqualificação da presidenta. Se antes Dilma foi tratada como apática, um “poste”, marionete de Lula e era acusada de vitimização, agora IstoÉ traz Dilma como explosiva, fora do controle, violenta, louca. Essa fala traz uma associação machista infelizmente ainda bastante comum: desqualificar a mulher chamando-a de “histérica”.

Os movimentos feministas acusaram rapidamente o discurso da IstoÉ como revelador de um aspecto central do machismo e da violência psicológica à qual muitas mulheres estão submetidas. A reação nas redes sociais foi imediata, com #IstoÉMachismo constando entre os assuntos mais falados do Twitter.

Outros recursos discursivos importantes utilizados na matéria foram a sugestão de uma “iminência” do afastamento da presidenta e a tentativa de estabelecer relações entre a situação de Dilma e a do ex-presidente Fernando Collor, em 1992.

Renovação dos discursos nos editoriais dos jornais impressos

As estratégias narrativas de O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo parecem ter mudado nos últimos dias, diante do avanço do discurso antigolpe, embora sigam alinhados nos ataques ao governo federal e na articulação do discurso da oposição.

Na quarta-feira, véspera do aniversário de 52 anos do golpe de 1964, O Globo publicou um editorial tentando dar novo significado à palavra “golpe”, acusando aqueles que se manifestariam no dia seguinte, em defesa da democracia, de golpistas e mal-intencionados.

Para a direção do jornal, denunciar as ilegalidades do processo de impeachment em curso e da seletividade da justiça como golpe de Estado é que seria um verdadeiro “golpe”. Irônica ressignificação da palavra feita por aqueles que preferiram, décadas atrás, chamar de “revolução” o golpe de Estado e que apoiaram editorialmente a ditadura militar.

A tentativa de apresentar os manifestantes antigolpe como um todo homogêneo pró-governo permanece nesses discursos, quando se referem a eles usando repetidamente sujeitos como “PT e aliados” e “lulopetismo”.

Os editoriais d’O Estado de S. Paulo são ainda mais reacionários, se é que é possível. Os ataques a seus alvos recorrentes — PT, Lula, Dilma e os movimentos sociais — subiram de tom para pautar a oposição.

Lula é tratado como “chefão”, numa alusão ao crime. Os contrários ao impeachment são menosprezados (“só podem ser desinformados”), enquanto os que sustentam a presidenta são, para o jornal, apenas “oportunistas” e “chefes de movimentos sociais transformados em milícias” ou “raivoso exército de adversários da democracia”.

As ações da oposição respondem aos discursos desses meios. No dia 26 de março, em editorial intitulado “Querem incendiar o país”, O Estado de S. Paulo acusa os movimentos sociais de incitação a violência e chega a sugerir a prisão de Guilherme Boulos, liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Dias depois, tal prisão foi solicitada por parlamentares do DEM e do PSDB.

Como de costume, o jornal distorce as pautas das frentes de mobilização social e busca criminalizar os movimentos sociais. Curiosamente, enquanto o Movimento dos Sem-Terra (MST) ganhou adjetivos como “pandilha”, “bando” e “decano da arruaça nacional”, fascistas que anunciaram recompensa para quem hostilizasse o ex-ministro Ciro Gomes foram tratados pelo Estadão como “grupo pró-impeachment”. Nenhuma palavra nos editoriais.

Já a Folha de S. Paulo trouxe um pedido de renúncia de Dilma em editorial deste sábado. O jornal diz que “passa a se incluir entre os que preferem a renúncia à deposição constitucional”. Se as intenções continuam sendo a derrubada da presidenta e do PT a qualquer custo, houve um aparente recuo na “solução impeachment”. Parece que a resistências das ruas e o avanço do discurso antigolpe têm incomodado.

O editorial sugere a renúncia da dupla Dilma e Temer ou a cassação da chapa pelo TSE, com a realização de novas eleições. Pede, ainda, o afastamento de Eduardo Cunha. Percebe-se o reconhecimento pelo jornal da fragilidade da tese do impeachment e dos riscos para o país de um governo Temer.

No entanto, o recuo (ou “abertura ao diálogo”, como entendeu o ex-ministro Renato Janine Ribeiro) não muda as intenções e a leitura que propõe o próprio jornal. O jornal é “traído” pelo próprio texto, quando simplifica a complexa e conflituosa realidade atual, afirmando que Dilma seria, hoje, “o obstáculo à recuperação do país”.

A pretensa — e falsa — pluralidade da Folha foi defendida pelo editorial: “esta Folha continuará empenhando-se em publicar um resumo equilibrado dos fatos e um espectro plural de opiniões”. Vale lembrar que, entre seus mais de cem colunistas, são menos de dez aqueles que se posicionam à esquerda ou que são contrários ao impedimento.

O amplo destaque que o editorial recebeu pela Folha e pelo UOL (portal de notícias do Grupo Folha) acompanhava a chamada: “Maioria dos leitores da Folha apoiam o impeachment”. Até aqui a tese da pluralidade é questionável: são plurais ou favorecem a opinião da maioria dos leitores? Mas o mais importante é lembrar que, se querem fazer parecer que a opinião dos leitores justifica as posições do jornal, o que se deve considerar é o papel ativo dos meios na produção e circulação desse discurso.

Os grandes meios de comunicação são produtores da atual crise política. Ampliam certos aspectos da realidade, silenciam muitas variáveis que compõem o cenário político brasileiro e fabricam as narrativas dominantes. Em um cenário midiático de tão pouca pluralidade e diversidade de sentidos em circulação, podemos identificar, como propunha o intelectual Milton Santos, uma violência da informação. 

A mídia segue organizando boa parte da ação e do discurso da oposição. Agora, tenta a dissociação entre sua imagem e um possível “golpe de Estado” em curso. No entanto, não nos enganemos: seus próprios discursos colocados em circulação nesta semana apontam para a permanência de suas intenções.

* André Pasti é doutorando em Geografia Humana na USP, professor do COTUCA/Unicamp e integrante do coletivo Intervozes.

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