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Fernando, Alexandre, Lucas e Henry: da Barra da Tijuca a Belford Roxo

Sem a mesma cobertura midiática, celeridade policial e apelo popular, o caso de Fernando, Alexandre e Lucas segue sem solução

Foto: Reprodução TV Globo
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Nunca li nenhuma matéria sobre o “Caso Henry”, nem acompanhei as reportagens da TV. Mas sei que a criança de 4 anos foi morta e o principal suspeito, Dr. Jairinho, encontra-se preso, assim como a mãe de Henry Borel, Monique, acusada de envolvimento com o crime.

Ao que parece, a tese inicial de acidente foi logo descartada pela perícia médica, o que levantou suspeitas de que se tratava de um homicídio. O padrasto de Henry, pelo que soube, costumava agredir fisicamente o garoto e em uma dessas “sessões de tortura” a vítima não resistiu e veio a óbito. Era começo de março.

Salve engano, a mãe tentou acobertar o crime. Mas além da perícia, o depoimento da babá e as investigações que conseguiram recuperar uma troca de mensagens que haviam sido apagadas do WhatsApp pelos suspeitos, fundamentaram a acusação. Diante das evidências, Monique também foi denunciada e teria até trocado de advogado, adotando uma linha para se isentar de qualquer participação.

Jairinho, por sua vez, além de responder pelo crime, também tem enfrentado um processo de cassação do seu mandato. Vereador pelo Solidariedade, do Rio de Janeiro, é um personagem caricato da política: homem, branco, rico, bolsonarista, que usa o nome de Deus para pedir voto e se diz “defensor da família”. Isso eu vi em postagens e memes no Instagram, que denunciavam sua contradição.

Mas como eu sei de tanta coisa sem nunca ter me aprofundado no assunto? Simples! Quando eu entrava no site do Globo ou da Folha/UOL, lá estava a notícia destacada logo na “primeira página” dos portais. Mesmo indo atrás das principais notícias do dia, era impossível não passar o olho por uma das manchetes e absorver a “novidade” envolvendo o “Caso Henry”.

Entre um samba e um Caetano, a apresentadora do programa da rádio noticiava alguma informação: “foi preso no Rio, Dr. Jairinho”. No mercadinho da esquina, defronte ao bar de Carlinhos, enquanto eu aguardava na fila do caixa, a televisão ligada na Band trazia um apresentador eufórico que transformava a história real em uma ficção macabra. No café da manhã, dava pra ouvir a vizinha de cima, dona Yara, comentar o caso que era reportado pelo programa de TV – supostamente Record, já que, pelo que consigo escutar, Dona Yara só se informa pela Record e por vídeos que recebe pelo celular.

Portanto, mesmo que eu quisesse (e quis!) não acompanhar o “Caso Henry”, o bombardeio midiático era tamanho que foi impossível não saber o que estava acontecendo. Me fez lembrar dos “Nardoni”, outro caso que também não acompanhei, mas até hoje ouço falar.

Crianças desaparecidas em Belford Roxo

Em 27 de dezembro de 2020, há 5 meses, Fernando Henrique (11 anos), Alexandre da Silva (10) e Lucas Mateus (8) desapareceram no bairro onde moram. Pelos principais veículos de comunicação, eles foram batizados de “crianças desaparecidas em Belford Roxo”. Assim, sem nome. E no sobrenome, a cidade periférica onde moram. Eles costumam fazer isso com negros. Foi assim que Evaldo dos Santos foi batizado de “músico fuzilado com 80 tiros” e Cláudia Silva Ferreira se transformou na “mulher arrastada por viatura”.

Carregando “Belford Roxo” no sobrenome, “deviam estar envolvidos com o tráfico” – deve ter pensado dona Yara. Talvez ela também tenha recebido a mensagem que circulou pelo WhatsApp noticiando que as crianças haviam sido localizadas em um “terreiro de macumba de propriedade de Winnie Bueno”. De acordo com a “fake news”, a pesquisadora e ativista negra estaria preparando os meninos “para um sacrifício de macumba”.

Essa narrativa racista, que ganha forma a partir de discursos feitos por políticos como Dr. Jairinho, também costumam passar pela cabeça de policiais. E isso legitima, por exemplo, chacinas cometidas pelo próprio Estado.

Isso pode justificar a falta de preocupação do delegado quando recebeu a denúncia do desaparecimento – “deve ter sido uma pequena travessura”, teria dito um dos policiais às mães, recomendando que voltassem para casa. E as vítimas – como prega o discurso racista – nem devem ser tão vítimas assim, muito menos dotadas de direitos. Não precisava, portanto, seguir a lei (11.259/05) que determina à polícia iniciar imediatamente a busca por crianças desaparecidas.

Esperaram mais de 24 horas para procurarem Fernando, Alexandre e Lucas. Somente uma semana depois da denúncia é que o delegado começou a ouvir testemunhas que pudessem ajudar a elucidar o caso. Mais de vinte dias depois, ainda não havia uma linha de investigação definida. E as famílias foram às ruas protestar!

No dia 12 de janeiro, familiares, mães e avós, fecharam uma das ruas de Belford Roxo. Durante a manifestação, queimaram um ônibus. Funcionou! O caso repercutiu nacionalmente e nesse dia a Globo deu 3 minutos e 30 segundos de matéria, incluindo uma entrevista em que cobrava o secretário de Polícia Civil, Allan Turnowski, pela demora no início da investigação.

Histórias sem fim

Diferentemente do “caso das crianças desaparecidas em Belford Roxo”, diariamente a polícia do “caso Henry” trazia novidades comemoradas pela imprensa: não foi acidente, a babá mentiu, recuperaram mensagens apagadas, ex-namorada presta depoimento, o vereador foi preso. Tudo com início, meio e fim, com uma celeridade e narrativa dignas de um bom filme policial. A força-tarefa, montada pela Polícia Civil 26 dias após a morte de Henry, ajudou a desvendar essa história.

Já no caso do desaparecimento de Fernando, Alexandre e Lucas, os policiais levaram 100 dias para criar uma força-tarefa. Desde janeiro, o secretário e os policiais afirmavam terem analisado as câmeras de vigilância da região, sem encontrar nenhuma pista. Se viram, não viram as três crianças gravadas por uma das câmeras. Quem viu foi o Ministério Público, mais de dois meses depois, quando solicitou o material à polícia. Na última imagem identificada dos meninos, eles passeavam em direção à feira de Areia Branca.

Na última sexta-feira (21), uma operação da Polícia Civil prendeu 17 pessoas em Belford Roxo, acusadas de torturarem um morador para que assumisse a culpa pelo desaparecimento das crianças. No mesmo dia, o delegado Uriel Alcântara anunciou uma nova linha de investigação, de que as crianças teriam furtado um pássaro e recebido represálias do grupo que controla o tráfico na região. Ao jornal Extra, Rana da Silva, mãe de Alexandre, refutou a versão: “como são pretos e pobres, fica fácil rotular eles como pivetes, como ladrõezinhos de rua. Estamos revoltadas e não concordamos, essa história é mentira”.

Aparentemente, sem pressão midiática, os policiais não têm tanta pressa para investigar ocorrências na periferia. O caso do desaparecimento não esteve nas principais manchetes do país, mas eventualmente ocupava o noticiário. É o caso do jornal carioca O Globo que, ao cobrir o dia de manifestação dos familiares, publicou uma matéria em sua décima segunda página: “Infância Marcada pela Violência – parentes de três meninos sumidos há 17 dias fazem protesto na Baixada” – como é possível perceber, “crianças” foi substituída por “meninos” e “Belford Roxo” por “Baixada”.

No referido jornal, o “caso Henry” já chegou a ocupar a manchete de capa. No dia 27 de março, a Folha de São Paulo deu sua primeira nota na primeira página: “Polícia investiga mãe, padrasto e pai de Henry, 4”. A criança já tinha nome. Os suspeitos ainda não. No intervalo de um mês, o caso apareceu outras seis vezes na capa do jornal. No início de abril, foi parar no destaque de capa da Veja. Uma semana depois, Monique e Jairinho já estavam presos.

O “caso Henry” teve um desfecho acompanhado pela imprensa. Sua história foi contada como um suspense policial, uma novela das oito, ou um drama comovente, a depender do apresentador, do jornalista e do veículo. Os policiais investigadores foram personagens principais e fundamentais para o desenrolar da trama. O crime contra uma criança branca de 4 anos, moradora da Barra da Tijuca, despertou na sociedade sentimentos da compaixão à revolta.

Sem a mesma cobertura midiática, a mesma celeridade policial e apelo popular, o caso de Fernando, Alexandre e Lucas segue sem solução. E cresce o risco dessa história virar estatística, tal qual as histórias de 22 crianças baleadas e 8 mortas em tiroteios no Rio de Janeiro, em 2020. Todas pretas. Ou quase pretas de tão pobres. E todos sabem como, no Brasil, se tratam os pretos. Ninguém é cidadão.

E ainda há quem reclame do ônibus queimado.

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