Intervozes

A política de conexão à internet pode se tornar a política do agro

Se depender do Ministério das Comunicações, em breve, teremos mais bois conectados do que pessoas

Edição: Marina Pita
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Na semana passada, o Ministério das Comunicações publicou, no Diário Oficial da União, a lista dos profissionais que integrarão o Conselho Gestor do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust). Não foi surpresa para quem tem acompanhado os movimentos da pasta no último período, mas é importante o registro público para aqueles que não têm como tarefa o acompanhamento diário dos movimentos das políticas públicas de acesso à internet. Em breve, teremos mais bois conectados do que pessoas

A presença marcante de pessoas diretamente vinculadas ao agronegócio nacional no conselho do Fundo reforça algumas declarações do próprio ministro, Fábio Faria (PSD-RN), de que o recurso contingenciado historicamente seria agora liberado para conectar o gado e os milhares de quilômetros de monocultura no Brasil

Em maio de 2021, Faria afirmou que pediria ajuda à bancada ruralista para aprovar a mudança regulatória que permitirá a liberação do Fust para a expansão das redes de suporte à banda larga. Antes, o ministério já havia apresentado a proposta de uso do Fust ao setor agropecuário, conforme registro do site Teletime: “Está prevista a cobertura de uma área de 275 mil km² que será desenvolvido em parceria com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). O projeto, que está estimado em R$ 726 milhões, deve ser financiado com recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust)”.

O cenário, portanto, estava montado. Mas a sociedade civil não imaginava que seria o agronegócio a representá-la no Conselho do fundo. Uma coisa é considerar projetos para o agronegócio, outra é colocá-los na liderança do debate de conexão do país. É no mínimo questionável que os dois homens escolhidos para representar a sociedade civil com mandato de três anos são os que menos têm experiência com temas minimamente correlatos ao Fust, mas muita proximidade com o agro. 

Matheus Ferreira Pinto da Silva, designado como titular, era coordenador de inovação do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural em 2021, sendo essa a única possível justificativa para a escolha, apesar de ser precária, já que, no mais, suas atividades estão muito mais próximas do agronegócio do que das telecomunicações. É necessário refletir até que ponto sua experiência no Senar é representativa dos grupos componentes da sociedade civil mais carentes de acesso à internet e à comunicação no geral. 

Além disso, o Senar é vinculado à Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil, que tem uma proximidade maior com o patronato rural brasileiro, epistemológica e politicamente, do que com as comunidades tradicionais rurais, pequenos produtores e camponeses. Por exemplo, em 26 de abril, a CNA realizou um encontro na Jornada CNA defendendo a “reforma” trabalhista de 2017. Participaram da mesa Ronaldo Nogueira, pastor da Assembleia de Deus e político do Republicanos que foi alvo da “Operação Gaveteiro” da Polícia Federal, suspeito de ter desviado 50 milhões de reais do Ministério do Trabalho por meio do contrato com uma empresa de tecnologia, e Ives Gandra Filho.

Este último é filho de Ives Gandra Martins, advogado, membro da Opus Dei, que afirma que não houve ditadura civil-militar no Brasil – inclusive apoiou a instauração do regime ditatorial, como ele próprio diz em artigo contrário à Comissão Nacional da Verdade – e defende a criminalização do MST. Também, escreveu o prefácio da edição brasileira do livro “Ideologia de gênero: o neototalitarismo e a morte da família”, do ultraconservador argentino Jorge Scala, onde lhe tece inúmeros elogios. Recentemente, proferiu parecer, encaminhado à CPI da Covid, defendendo a inocência de Bolsonaro na gestão da pandemia.

Ives Gandra Filho segue os passos do pai na defesa da constitucionalidade de uma intervenção militar no país. Foi o ministro responsável pela decisão judicial do TST contrária à greve dos petroleiros de 2020, com imposição de multas milionárias. Além disso, defendeu a MP 927, de flexibilização das normas trabalhistas e aumento da jornada de trabalhadores da saúde durante a pandemia. Não é de se admirar que seja defensor de Bolsonaro, junto com a irmã, Angela Gandra Martins, atualmente Secretária de Família no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a convite de Damares Alves.

Por outro lado, Marco Olívio Morato de Oliveira, escolhido como suplente, não tem nenhuma prática, ao menos segundo seu próprio LinkedIn, em telecomunicações. Também integra a Organização das Cooperativas Brasileiras, que se tornou, desde 1985, “a força dirigente dos grupos dominantes agroindustriais do país”.

Portanto, a qualificação de ambos não é uma justificativa plausível para sua escolha, tendo sido indicadas pessoas bem melhor qualificadas para o cargo. As indicações da Coalizão Direitos na Rede, rede formada por mais de cinquenta organizações defensoras dos direitos digitais, acumulam muito mais qualificação e prática na defesa das telecomunicações, ainda assim, nenhuma delas foi escolhida. Ou seja, perdeu-se em diversidade no Conselho do Fust. Ganhou o agro, que é pop.

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