Intervozes

A espetacularização do estupro na mídia: não basta a notícia?

Com ou sem a tarja de proteção, precisamos entender que a divulgação do vídeo do estupro e seu uso pelos meios de comunicação são totalmente inadmissíveis

Créditos: Divulgação
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Nas últimas semanas, um crime tomou conta das mídias e das conversas no Brasil. Nas páginas das amigas nas redes sociais muitas comentavam sobre o caso do médico anestesista estuprador. Difícil imaginar uma mulher no País que tenha se deparado com o caso e que não tenha se apavorado. Nós, mulheres, não estamos seguras nem no hospital na hora do parto.

Um dos textos que li falava do alívio em saber que a parturiente estuprada foi poupada pela família e não estava ainda ciente da violência que sofrera. “Se não sabe, logo saberá”, pensei. A vítima foi preservada, no entanto, apenas pela família. A mídia brasileira não a poupou de nada. O vídeo de seu estupro viralizou sobremaneira, espalhando-se velozmente pelas redes, propagado por veículos de comunicação e pessoas de todas as vertentes políticas.

Estou obviamente muito aliviada que provas tenham sido produzidas e que o estuprador tenha sido preso. Contudo, uma prova com 10 minutos de duração, 10 agonizantes minutos, seria mesmo necessária? Cynthia Ciarallo disse em um post: “mártir para algumas, martírio para si”. Findos esses 10 minutos, a agonia não cessa. Findos esses 10 minutos ouso dizer que o estupro prosseguiu. Sim, essa mulher estuprada na mesa da cirurgia segue sendo estuprada cada vez que o vídeo passa na tela de algum celular, computador, televisão. É um novo estupro cada vez que essa imagem circula. Por que é que precisamos ver a violência? Não basta a notícia?

A pergunta primordial talvez seja esta: como é mesmo que um vídeo, que é prova de um crime, foi parar na mídia? Precisamos nos perguntar com seriedade qual é a real necessidade de se passar um vídeo desses em rede nacional. Por que é que não basta a informação? A gravação deveria servir de prova nos autos do processo e nada além disso. A esta altura, por que é que isso ainda não é óbvio para nós? Com ou sem a tarja de proteção, precisamos entender que a divulgação do vídeo, seu uso pelos meios de comunicação, é totalmente inadmissível. É a revitimização dessa mulher e a espetacularização do estupro. São tantas violências sobrepostas que estamos vivendo um círculo vicioso, uma verdadeira tragédia distópica.

Há alguns anos circulou uma imagem de estupro estarrecedora. Tratava-se de um adesivo, uma montagem com o rosto de Dilma Rousseff. Tal adesivo estava à venda no Mercado Livre. Colado na entrada do tanque de gasolina do carro, fazia alusão ao estupro, que, ao abastecer-se com a bomba de gasolina, violava a presidente da República. Quando uma imagem criminosa como essa circula, produz efeitos devastadores. O crime ocorre toda vez que a imagem é vista. Muitas pessoas, inclusive apoiadoras de Rousseff, indignadas com a imagem e no afã de denunciá-la, fizeram-na circular ainda mais, contribuindo para sua difusão.

Parece ser contraintuitivo não circular a imagem, como se tivéssemos que provar sua verdade justamente mostrando-a, a fim de reforçar a narrativa. Essa fixação na imagem como prova nos tem feito muitas vezes cúmplices de crimes terríveis. Tal qual a circulação do adesivo misógino, a divulgação do vídeo da parturiente estuprada trai em muito o intuito da denúncia e da prova e produz o efeito de seguir violentando uma vítima duplamente vulnerável. Vulnerável por se encontrar em uma mesa de cirurgia, sedada, sem possibilidade de defesa ou compreensão do ato, e vulnerável por ter sua imagem propagada ad eternum, agora para sempre estuprada em vídeo, nas telas dos celulares, tablets, computadores e das televisões do país.

Efeito Wanda 

Violência pega? Essa pergunta é o título da minha tese de doutorado, em que estudei a colonialidade dos meios de comunicação, o tema da espetacularização da violência e seu efeito mimético. A violência certamente pega e se viraliza, a violência espetacularizada fomenta mais violência. O já conhecido “efeito Werther” ou copycat desencoraja a divulgação de casos de suicídio, por seu efeito mimético comprovado em décadas de pesquisas. Isso inclusive ensejou um manual com recomendações a profissionais dos meios de comunicação pela Organização Mundial da Saúde. Em um paralelo ao efeito mimético no suicídio, chamo de “efeito Wanda” o efeito mimético da violência nos meios de comunicação, a partir do caso do feminicídio de Wanda Taddei na Argentina, assassinada com o uso de fogo pelo marido, Eduardo Vásquez, baterista de uma banda de rock. A cobertura do caso pela mídia fomentou o espelhamento de outros homens e o que era um modo incomum de matar mulheres (3 a 6 casos por ano) passou a ser um modo mais difundido (136 casos nos 3 anos subsequentes).

Trata-se de uma questão complexa que envolve o paradigma narrativo que, mesmo com intenções louváveis de jornalistas de boa-fé, transforma agressores em celebridades e estimula um cenário propício a novas agressões. Já passa da hora de ganharmos mais consciência sobre os mecanismos miméticos. A narrativa hegemônica que domina os meios de comunicação é a narrativa que Teresa De Lauretis, nos anos 80, já definira como sádica. Além de contraproducente, tal narrativa contribui, ainda, para a ideia de que há algo “de errado” com o indivíduo. Segundo Rita Segato, o estuprador é cumpridor do “mandato da masculinidade”, que é ter de exibir força a seus pares, demonstrar permanentemente que é homem e que pode submeter mulheres. O estupro é, portanto, um crime de poder, não um ato sexual, pois no imaginário do homem estuprador estão os outros homens, para os quais precisa provar virilidade e demonstrar seus atributos a fim de ingressar no “clube dos homens”. Nesse sentido, o estuprador é um autômata, um fiel cumpridor da ordem patriarcal.

A mídia precisa parar de monstrificar o indivíduo, parar de apontá-lo como anômalo. A estrutura patriarcal é que é anômala. O estuprador é mais um autômato, um pobre infeliz cumpridor do mandato patriarcal, refém da aprovação da irmandade masculina. Um modo narrativo mais responsável deve focar em esvaziar a força convocatória da notícia. Desde que o crime em tela ganhou as mídias, o médico anestesista estuprador arregimentou 5 mil novos seguidores no Instagram, conforme matéria publicada pela Veja. Isso acontece porque, mesmo quando apontam perpetradores como maus, o modo de narrar reforça o protagonismo do agressor e um modelo de onipotência,  levando, em seu âmago, mensagens de magnitude e força, medo e temeridade. A perversão narrada arregimenta admiração e isso é apelativo e convocatório para outros homens. Corroborar para a narrativa potencializadora do agressor vai simplesmente arregimentar mais agressores, é o que se tem feito até hoje. Os meios de comunicação deveriam esvaziar os agressores de vigor, transmitindo fragilidade, debilidade, impotência, infelicidade. Uma imagem de um homem atrás das grades, um infeliz, acompanhando a notícia, por exemplo, pode ser profundamente didática.

Enfim, a esta altura, já não se pode alegar ingenuidade. É preciso não somente que se tenha em conta o efeito mimético, mas também a pedagogia insidiosa da banalização da violência contra as mulheres e outros corpos feminizáveis/subalternizáveis, a normalização de uma paisagem misógina promovida pela mídia. Nosso modo de narrar está colonizado pelo paradigma sádico. Precisamos rediscutir a ética e a responsabilidade no jornalismo e nas redes sociais. Precisamos de políticas públicas de educação digital que levem em conta o efeito mimético nas mídias. Precisamos, sobretudo, descobrir outros modos de contar histórias. Inverter a lógica da narrativa em si significa, por certo, concentrar-se em esvaziar a potência dos agressores, mostrar a debilidade de estupradores, levando adiante uma mensagem de fracasso e impotência. Eis uma tarefa urgente-urgentíssima tanto para os grandes meios de comunicação, quanto para a sociedade como um todo, pois hoje, com as redes sociais, cada pessoa tem seu poder midiático majorado. Somos, todas as pessoas, guardadas as devidas proporções, peças fundamentais na manutenção do consumismo sádico de cenas grotescas, da paisagem hiperviolenta e dos sistemas de opressão. Quando o tema é violência, o modo como se faz jornalismo e como se narra também precisa estar na pauta do dia: um giro decolonial midiático e narrativo é tarefa colossal, mas inescapável para um mundo menos violento.

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