Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Ao se curvar a Israel, Bolsonaro escancara a submissão aos EUA

A despeito das bravatas ideológicas, o crescimento do Brasil no mundo se dá mais por Teerã, Ramalah e Doha do que por Washington e Tel-Aviv

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Jair Bolsonaro e sua equipe iniciaram a composição do novo governo. Se no programa de governo do presidente eleito o tema da política externa aparecia de forma tímida e nada propositiva, seus primeiros discursos parecem ilustrar as linhas da nova visão que deve levar ao Itamaraty no próximo período.

Além da sinalização de desprezo ao Mercosul e às relações regionais, o tema mais repercutido pela imprensa internacional foi a afirmação de Bolsonaro, por meio do Twitter, em repetir o presidente norte-americano Donald Trump e transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém.

O Plano de Partilha da Palestina, aprovado em 27 de novembro de 1947 pela recém-criada Organização das Nações Unidas, estabelece a divisão do território palestino (então uma colônia britânica), garantindo 53% do território para 700 mil judeus (locais e oriundos da diáspora judaica da Europa durante a II Guerra Mundial e que em 1948 fundariam o Estado de Israel) e 47% do território para 1 milhão e 400 mil palestinos.

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De acordo com o documento, Jerusalém e Belém, por sua representatividade cultural e religiosa, deveriam permanecer sob controle político e administrativo da ONU, não podendo ser anexadas por nenhum dos dois novos países. Em julho de 1967, forças israelenses invadiram os territórios palestinos, ocupando militarmente a Faixa de Gaza, Jerusalém, áreas da Cisjordânia, a Península do Sinai (posteriormente devolvidas ao Egito) e as Colinas de Golã na Síria.

No mesmo ano de 1967, a ONU aprovou a Resolução 242, a exigir a retirada israelense dos territórios ocupados, não cumprida até hoje. A ocupação militar de Israel hoje corresponde a cerca de 92% do território histórico da Palestina, causando milhões de refugiados e confinando 3 milhões de palestinos a uma pequena parcela de território. O reconhecimento de Jerusalém como capital israelense, portanto, não apenas vai contra as resoluções da ONU, mas legitima uma ocupação ilegal.

Mais do que a decisão de alteração da embaixada brasileira para Jerusalém, Bolsonaro, em entrevista ao jornal Israel Hayoun, afirmou que a embaixada da Palestina foi construída muito perto do palácio presidencial. “Nenhuma embaixada pode estar tão perto, então pretendemos mudar. Não há outro caminho, na minha opinião. Fora isso, Palestina primeiro precisa ser um estado para ter o direito de uma embaixada”. Com a declaração, Bolsonaro mostra desconhecer a história da política externa brasileira.

Bolsonaristas pró-Israel Eleitores de Bolsonaro ostentam uma bandeira de Israel (Carl de Souza/AFP)

Em 1975, em plena ditadura, o governo Geisel reconheceu a Organização Para a Libertação da Palestina (OLP) como representante legítima do povo palestino e autorizou a OLP a possuir representação diplomática no país. Em 1993, nos marcos dos Acordos de Oslo, o Brasil permitiu a configuração de uma Delegação Especial palestina em Brasília, que em 1998 teve o status reconhecido como o de uma embaixada.

Em 2004, o Brasil abre um escritório de representação diplomática em Ramallah, posteriormente transformado em embaixada. Em 2010, nos marcos da Política Externa Altiva e Ativa liderada pelo ex-ministro Celso Amorim, o Brasil reconhece o Estado Palestino nas fronteiras de 1967, marcando uma política conciliatória do Brasil na região, e iniciando movimento diplomático que culminou com a decisão histórica do reconhecimento da Palestina como Estado Observador da ONU em 2012.

Não à toa, a rua onde está localizada a Muqata, o Palácio de Governo em Ramallah, foi renomeada Rua Brasil, em reconhecimento ao papel ativo do país e seus distintos governos na questão palestina.

Ao imitar Trump e se curvar aos anseios do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que estuda estar presente na posse do novo presidente, Bolsonaro escancara um alinhamento automático aos Estados Unidos, relegado em diversos momentos da história da política externa brasileira e que foi praticamente abandonado pelas doutrinas praticadas no Itamaraty desde a consolidação da Ditadura Militar e a retomada da Política Externa Independente.

Bolsonaro também parece cometer um erro primário das Relações Internacionais. Ao copiar Trump, o futuro presidente brasileiro parece não perceber que o Brasil não é uma potência política, econômica e militar como os Estados Unidos e as consequências de bravatas e mimos ideológicos são muito mais pesadas. A condição de liderança regional do Brasil, sua diversa economia internacional e seu papel nos organismos internacionais se dão justamente pela pluralidade de relações políticas e econômicas, e o papel de mediação de conflitos e defesa do multilateralismo.

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Ao abrir mão deste histórico, Bolsonaro prefere assumir um papel de satélite estadunidense, prejudicando relações estratégicas com outras potências como a China (e a própria condição do Brasil nos BRICS) e aliados regionais. Assumir lado no conflito Israel-Palestina também significa queimar pontes importantes com países árabes, que hoje constituem mercados importantes para a produção brasileira, especialmente no setor pecuário.

A aproximação com Netanyahu faz o Brasil ir na contramão das democracias mundiais e dos ativistas internacionais que estudam ações de Boicote, Sanções e Desinvestimento (BDS) contra o apartheid israelense, a exemplo do movimento histórico contra o sul-africano. Bolsonaro, portanto, assume também na política externa a mais vil de suas faces apresentadas em sua construção política nacional, o apoio ao opressor, o desrespeito aos direitos humanos e aos excluídos.

Não se trata de uma questão menor. As declarações de Bolsonaro não são fruto de desinformação, mas a linha de frente da destruição da política externa brasileira como a conhecemos, cujas consequências atingem diretamente a economia do país e a visão que o mundo tem do Brasil, rebaixando-o de seu papel de ator fundamental do Sul global.

Urge, portanto, recuperar o debate estratégico acerca da política externa e relembrar que o crescimento do Brasil no mundo se dá mais por Teerã, Ramalah e Doha do que por Washington e Tel-Aviv.

* Pedro P. Bocca é integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.

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