Fora da Política Não há Salvação

Um espaço para discutir política, uma dimensão inescapável de nossa existência. Idealizado pelo cientista político Cláudio Couto.

Fora da Política Não há Salvação

Um governo contra o Estado

Cresce o risco de uma intentona fascistoide perpetrada por Bolsonaro e seus cúmplices fardados ou civis

Foto: EVARISTO SA / AFP
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Os últimos eventos do embate entre o bolsonarismo e a institucionalidade democrática são, ao mesmo tempo, alarmantes e previsíveis.

Alarmantes porque, quanto mais próximas as eleições, maior é para Jair Bolsonaro o risco de não se reeleger e, por isso mesmo, maior sua propensão a atacar tudo que possa por freio à sua vocação autocrática. Assim, cresce o risco de uma intentona fascistoide perpetrada pelo presidente e seus cúmplices fardados ou civis.

Previsíveis porque sendo Bolsonaro quem sempre foi, cercando-se dos trogloditas militares de que se cercou e sendo esta época aquela do populismo autoritário em suas diversas variantes ideológicas, o que presenciamos nada mais é do que o encontro entre certos atores e o tempo que lhes é propício. Comportam-se da forma que deles se espera numa era que incentiva tal comportamento.

Nesta quadra histórica, como tem sido repetidamente dito, a destruição da democracia se dá de dentro para fora, corroendo as estruturas institucionais de funcionamento do regime a partir de sua ocupação pela via eleitoral. Foi assim na Venezuela chavista, na Hungria de Orbán, na Nicarágua de Ortega, na Polônia do PiS.

A pertinente metáfora da ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia, de cupinização dos órgãos de controle e fiscalização ambiental, aplica-se na verdade ao conjunto da administração pública federal e de entes sobre os quais o presidente é capaz de exercer influência – como a Procuradoria Geral da República, roída por dentro por um cupim dos mais rotundos a serviço do Grão Cupim que ocupa o Planalto.

Uma das dimensões dessa cupinização autoritária e corrupta é o governo do segredo que foi  implantado pelo bolsonarismo. Isso se manifesta tanto nos absurdos sigilos centenários impostos a informações de interesse público, como no escandaloso orçamento secreto, urdido pelo Executivo em acordo com o Centrão. Esse conluio de segredos é verbalizado com cinismo e desfaçatez pelo presidente da República e seus cúmplices – como o chefe da Câmara, Arthur Lira.

A um cidadão que lhe questiona sobre os motivos de esconder por um século informações públicas, Bolsonaro responde: “em 100 anos saberá”; Lira diz que o orçamento não é secreto, pois seus dispêndios podem ser aferidos consultando-se as redes sociais dos congressistas. Bom trabalho esse para o Tribunal de Contas da União, que precisará criar uma divisão voltada à contabilidade pública no Instagram e no Twitter. Coisas da modernização administrativa, quem sabe?

Um dos traços mais danosos dessa cupinização bolsonaresca é a partidarização desenfreada de diferentes âmbitos do Estado brasileiro, os quais constitucionalmente deveriam ser imunes a ela. Nunca em nossa história democrática o aparelhamento faccioso do Estado foi tão profundo e desabrido como agora. E nunca teve um viés tão autoritário.

No STF, o presidente alega (com razão) ter 10% da Corte, com a fidelidade canina do ministro Kassio Nunes Marques. Quer chegar aos 20% com o terrivelmente evangélico André Mendonça, que ensaiou alguma independência numa questão delicada como a envolvendo os crimes do deputado Daniel Silveira. Contudo, o magistrado demonstrou se preocupar com o que pensam dele e de suas decisões as hordas bolsonarescas. Por isso, se preocupou em justificar seu voto frente às críticas que recebeu da malta presidencial, usando uma metáfora terrivelmente bíblica, como bem cabe a quem só está ali por sua profissão de fé religiosa: disse ser preciso separar o joio do trigo.

Com Augusto Aras, a sigla PGR, que designa o cargo, passou a significar Preposto Governamental da República. O suposto procurador abdicou de sua função constitucional para poder agradar o chefe – a despeito do prejuízo que isso representa à defesa da legalidade. Logo ele, que não deveria ter chefe e teria como dever defender a ordem legal.

Nas Forças Armadas se assiste a uma partidarização que só encontra paralelo nos períodos ditatoriais de nossa história, em especial no funesto regime autocrático inaugurado em 1964. O “Partido Militar” em tempos de democracia tem em Bolsonaro seu mais dileto representante, apoiando-o partidariamente sem constrangimento para fazer jus ao ganho de poder político e às benesses corporativas em prol de seus quadros. Tudo isso às expensas da Nação que os profissionais das Forças Armadas deveriam, por dever de ofício, defender. Em vez disso, tornaram-se seus predadores.

Também a Polícia Federal se tornou objeto desse ataque faccioso pela nomeação de amigos da famiglia presidencial e pelo afastamento de policiais que se atreveram a cumprir o dever funcional ao ponto de incomodar o mandatário de plantão e sua gangue. Desde a redemocratização não se via um ataque tão sistemático à autonomia funcional dessa organização policial, vista por Bolsonaro e famiglia como parte de sua milícia.

Bolsonaro – extremista, rudimentar e marginal – é um político anormal que, por conseguinte, produz um governo anormal, cujo propósito não é a provisão de políticas públicas e a consecução de uma agenda governamental consistente, mas a ativação constante de seus devotos e a criação de constantes crises institucionais. Eleito pela crise, governa produzindo incessantemente novas crises. Apostando no tumulto, o bolsonarismo se nutre dele; por isso é de seu interesse produzi-lo e aumentá-lo sempre que possível. Tal criação contínua de instabilidade é seu modus operandi. Trata-se de um governo-movimento cujo propósito é a agitação e o tensionamento, não a gestão e a política institucional.

Numa sentença, trata-se de um governo contra o Estado.

Operar assim requer a criação de conflitos constantes com outros poderes constitucionalmente estabelecidos e com forças da sociedade civil, caso o funcionamento de ambos represente a imposição de freios e limites. É por isso que o Executivo Federal, especialmente o presidente, ataca incessantemente a imprensa, o Judiciário e os governos subnacionais que não lhe são subservientes. Por meio de tais ataques busca os deslegitimar, tratando-os como se fossem aquilo que na realidade ele é: um ente que atua contra a própria integridade do Estado brasileiro, predando-o e desmantelando-o.

Foi nesse contexto que se deu a concessão da graça presidencial ao deputado boçal, que pregou a violência contra ministros da Suprema Corte, bem como seu fechamento. Ao isentar o criminoso do cumprimento da pena, perdoando-o, buscou desacreditar o Poder Judiciário, fragilizando o principal ator a lhe colocar freios. Ao considerar mera “liberdade de expressão” a incitação à violência contra agentes de Estado e o atentado ao livre exercício dos poderes constitucionais, acatou como diretrizes políticas a violência e o golpismo, normalizando-os.

No caso do Poder Judiciário, Bolsonaro vem há tempos armando uma armadilha em que as cortes seguidamente caem. Atacando as cortes, diretamente ou por intermédio de prepostos, ele as coloca na situação de como instituições precisarem se defender. Essa é uma situação problemática para tribunais, pois os obriga a entrar de forma desabrida na seara política, da qual deveriam estar distantes por seu dever de isenção. Posicionando-se inescapavelmente de forma política (e não apenas judicial) num conflito dessa natureza, os tribunais se fragilizam. Assim, paradoxalmente, ao se defenderem, enfraquecem-se ainda mais, pois minam sua própria credibilidade e sua imagem de imparcialidade. É uma arapuca autoritária à qual são levados pelo incessante ataque bolsonaresco. De tanto serem ativados, os freios institucionais fadigam.

A coisa piora quando juízes cometem erros táticos primários, como entrar no debate político de forma explícita. Foi o que fez Luís Roberto Barroso ao apontar a tentativa (real, reconheça-se) presidencial de instrumentalizar facciosamente as forças armadas, levando-as a tomarem partido nas disputas políticas e, ainda pior, envolvendo-as na tentativa golpista de desacreditar o processo eletrônico de votação. Ao se desacreditar esse processo, fragiliza-se a própria Justiça Eleitoral. Ao fragilizá-la, enfraquecem-se o sistema de justiça e a democracia eleitoral como um todo. Barroso marcou um golaço – só que contra. Nem Oséas teria feito melhor. Bolsonaro comemorou.

Tal situação, além de colocar a cúpula do Judiciário na posição de contendora política (e, portanto, de viés partidário em boa medida), tem como corolário reforçar a partidarização das Forças Armadas – isto é, justamente o objetivo buscado pelo presidente da República e muitos à sua volta, que Barroso acreditava combater. Ao atirar no presidente, Barroso acertou nos militares, dando pretexto para sua reação e fortalecendo a facção castrense mais afinada com os objetivos autocráticos do presidente. Afinal, ao mesmo tempo que os militares se colocam ao lado de Bolsonaro, opõem-se ao Poder Judiciário, transformado em inimigo pelo ocupante do Planalto. Não há como sair disso algo benéfico ao Estado democrático de direito.

Daqui até o final do ano a tendência é só piorar.

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