Fora da Política Não há Salvação

Um espaço para discutir política, uma dimensão inescapável de nossa existência. Idealizado pelo cientista político Cláudio Couto.

Fora da Política Não há Salvação

André Mendonça, um ministro terrivelmente pequi-roído

‘A indicação do advogado-geral da União ao STF é bastante coerente com o governo Bolsonaro’, escreve o cientista político Claudio Couto

Foto: Alan Santos/PR
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A indicação do advogado-geral da União André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal, é bastante coerente com vários aspectos que caracterizam o governo Bolsonaro (embora não esgotem seu rol de defeitos): autoritarismo, desrespeito ao Estado laico, adulação… Seria possível acrescentar também mediocridade, considerando os argumentos que o AGU apresentou recentemente ao STF, em sua sustentação oral na ação referente ao fechamento ou não de igrejas durante a pandemia.

Contudo, não só a mediocridade supera a capacitação média do governo Bolsonaro, como os argumentos ali brandidos por Mendonça talvez tenham mais a ver com adulação – necessária à sua indicação para a Corte Suprema – do que com falta de brilhantismo jurídico.

Só para recordar, em vez de se basear na Constituição e na lei para defender que os templos permanecessem abertos, o AGU recorreu a argumentos de natureza religiosa. Quase escrevi que foram argumentos de base teológica, mas isto seria equivocado. Afinal, o dito ali foi muito mais um cabedal de senso comum jurídico combinado a farisaísmo religioso do que fundamentação baseada em áreas estabelecidas do conhecimento, como o são a teologia e o direito.

Um trecho merece destaque:

“A Constituição brasileira não compactua com o fechamento absoluto e a proibição das atividades religiosas, não compactua com a discriminação das manifestações públicas de fé. Tanto é assim, que remédios excepcionalíssimos da própria Constituição não admitem sequer esse tipo de medidas que estão sendo adotadas regionalmente. Não há Cristianismo sem vida comunitária. Não há Cristianismo sem a casa de Deus. Não há Cristianismo sem o dia do Senhor. É por isso que os verdadeiros cristãos não estão dispostos, jamais, a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto. Que Deus nos abençoe, tenha piedade de nós e eu começo por mim.”

Não nos deixemos enganar pela referência retórica à Constituição, um sofisma que ali está só para alegar algo falso sob o pretexto de que direitos fundamentais estariam sendo vilipendiados. Afinal, não houve “fechamento absoluto”, nem “proibição de atividades religiosas”, assim como não ocorreu “discriminação de manifestações públicas de fé”. O que houve foram, apenas, medidas sanitárias de distanciamento social, visando evitar aglomerações – o mesmo ocorrido com diversas outras atividades.

Equiparar isso a ataques à liberdade de culto é tão correto quanto supor que o rodízio de veículos viola nosso direito de ir e vir. O substancioso da sustentação oral de Mendonça aparece nos trechos finais da passagem acima: o matar ou morrer em nome da fé – ou de uma liberdade de culto que de forma alguma era ameaçada. E o matar e morrer nesse caso era bastante provável: tratava-se de matar ou morrer de Covid-19 por meio de aglomerações que cultos inevitavelmente produzem.

Ademais, Mendonça advogou essa abertura dos templos com uma referência muito particular ao cristianismo, como se o problema da abertura dos templos não dissesse respeito também a outras denominações religiosas, como os judeus, os muçulmanos, os umbandistas etc.. O fato de esses serem grupos religiosos minoritários de forma alguma justificaria uma desconsideração da sua liberdade religiosa, como ficava implícito. Ou só os cristãos é que estariam dispostos a morrer em prol da liberdade de culto? Porém, considerando-se que no Brasil, segundo Bolsonaro, as minorias devem se curvar às maiorias (ou seja, aos cristãos), a fala do AGU era condizente com a linha seguida pelo chefe.

Como AGU, Mendonça estava ali na defesa do governo que integra. E, como se trata de um governo contrário a medidas de distanciamento social, que ataca como se fossem uma forma de tirania de governadores e prefeitos, não surpreende o caminho tomado pelo indicado ao STF. Aliás, é um governo que também mistura as esferas da lei e da religião em proveito próprio. O Pai-Nosso puxado por Bolsonaro diante de perguntas incômodas dos repórteres é apenas uma demonstração caricata dessa mixórdia. Mais grave é o critério adotado para a indicação de Mendonça: um ministro “terrivelmente evangélico”.

Que sentido tem esse critério, se o que se discute no STF não são questões de fé religiosa, mas de respeito à legalidade e à Constituição? Se fôssemos ingênuos, talvez pudéssemos admitir que o que preocupa Bolsonaro não é o tipo de arrazoado que será invocado por um juiz, mas a representação descritiva de um grupo social significativo e crescente na sociedade brasileira, os evangélicos, que já superam os 30% de nossa população. Desse modo, assim como é importante que na corte haja negros e mulheres, historicamente subrepresentados, faria também sentido que houvesse representantes sociais de um grupo religioso historicamente ausente de nossa suprema corte. Aí, contudo, esconde-se um ardil.

Joaquim Barbosa, o primeiro negro a chegar ao Supremo, teve no critério de representatividade social da população negra um fator relevante em sua escolha. Ellen Gracie, primeira mulher na corte, também teve na representatividade de gênero um critério de indicação. Tanto num caso como no outro, as escolhas se inscreveram em políticas de ação afirmativa, necessárias para a incorporação de grupos historicamente excluídos dos espaços de poder. Não à toa, discutimos a sério cotas de mulheres e negros nas instâncias representativas, como o Congresso Nacional. Mas isso vale também para as religiões?

Se fossemos um País cindido por conflitos históricos de natureza religiosa, como a Irlanda do Norte ou o Líbano, talvez fizesse sentido alguma divisão desse tipo na ocupação de cargos públicos – e neles, de fato, isso é levado em conta. Entre nós, contudo, tal tipo de clivagem inexiste. A laicidade do Estado, princípio basilar das democracias, consta de nosso ordenamento constitucional justamente para evitar esse tipo de captura de parcelas do aparato estatal por determinados grupos religiosos para perseguir seus interesses particulares.

A confusão que norteia a indicação de Mendonça por Bolsonaro apareceu ainda mais claramente quando ele sugeriu que uma vez no Supremo ele abrisse as sessões com uma oração. Apesar do crucifixo que adorna uma parede de seu plenário, o STF não é um espaço dedicado a manifestações de caráter religioso ou cultos. Que sentido tem iniciar sessões judiciárias com uma oração, se o que estará em discussão ali não são questões de natureza religiosa, mas jurídica? Que sentido faz que um ministro, de uma fé específica, puxe orações que supostamente deveriam ser seguidas por seus colegas, de fés distintas ou, talvez, sem fé alguma? Claro que nada impede que um ministro ore antes de iniciar seu trabalho, mas esta é uma questão individual sua, não da instituição que integra – e portanto, seria absurdo impor a oração ao colegiado, como se fosse uma atividade coletiva normal, imposta constrangedoramente aos demais.

A sugestão de Bolsonaro revela o risco embutido numa indicação como essa. O indicado pode chegar à corte suprema incumbido de uma missão não de natureza republicana, mas religiosa. Essas duas coisas só estariam juntas se fossemos uma república cristã, um Estado teocrático – como o Irã é uma república islâmica. O?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> antropólogo da Unicamp, Ronaldo Almeida, aponta que grupos evangélicos têm como estratégia a ocupação de posições no sistema de justiça como forma de fazer valer seus interesses particulares. Tal coisa, contudo, é absolutamente incompatível com a democracia e o pluralismo que lhe sustenta. É mais uma demonstração do autoritarismo bolsonarista e de suas iniciativas voltadas à captura das instituições para seu projeto de poder autocrático.

O autoritarismo, aliás, é outra face das credenciais que levaram Bolsonaro a indicar Mendonça ao STF. Não apenas como AGU, mas também como Ministro da Justiça, o indicado do presidente deu seguidas demonstrações de não se incomodar em ser o advogado de causas antidemocráticas e, por isso mesmo, inconstitucionais. Não à toa, o órgão chefiado por ele defendeu, junto ao Supremo, que seja mantida uma previsão do Código Militar de 1969 – ápice da repressão autoritária – segundo a qual “crimes contra a honra” de militares ou suas instituições sejam considerados crimes militares e julgados pela Justiça Militar. Chegando ao STF, Mendonça seria incumbido de decidir inclusive sobre esta causa. Num governo apinhado de militares, inclusive da ativa e devotados a ameaçar adversários do presidente, o que significaria levar civis a serem julgados no STM? Estaríamos retomando uma prática análoga aos funestos Inquéritos Policiais Militares da ditadura de 1964.

Esse mesmo Mendonça, ainda como Ministro da Justiça, requisitou a abertura de inquéritos contra críticos do governo com base em dispositivos da Lei de Segurança Nacional incompatíveis com a ordem democrática. Ele o fez contra o colunista da Folha de S. Paulo, Hélio Schwartsman, que escreveu um texto em que expressava seu desejo que que Bolsonaro morresse de Covid; contra o cartunista Aroeira, que fez uma charge associando o presidente ao nazismo; contra o jornalista Ricardo Noblat, por ter reproduzido essa mesma charge; contra Ruy Castro, por satirizar Bolsonaro numa coluna, sugerindo seu suicídio; contra o advogado Marcelo Feller, que num comentário na CNN disse que Bolsonaro é politicamente genocida; contra Guilherme Boulos, por ter alertado o presidente de que tiranos correm o risco de terminar na guilhotina.

Além de mobilizar a Polícia Federal e o sistema de justiça para intimidar críticos, o indicado por Bolsonaro para o Supremo também teve produzido, no órgão sob seu comando, um dossiê que fichava policiais devido à sua militância antifascista. Ou seja, colocou o ministério para operar como uma polícia política, típica de regimes autoritários. E pior, se considera que a militância antifascista é um problema, pode-se supor que, para Mendonça, o contrário é que é bom.

Quando extremistas da base social de apoio de Bolsonaro lançaram fogos e rojões sobre o Supremo Tribunal Federal, simulando um bombardeio da corte e colocando em risco a integridade de pessoas e do patrimônio, Mendonça não os condenou. Pelo contrário, afirmou que “devemos agir por este povo, compreendê-lo e ver sua crítica e manifestação com humildade. Na democracia, a voz popular é soberana”. Conhecida que é a noção bolsonarista de quem seja o povo, circunscrita a seus apoiadores, a manifestação do AGU endossou o ato intimidatório, clamando por humildade perante ele. Não bastasse, sugeriu aos poderes constituídos, sob ameaça dos extremistas, uma autocrítica.

Se não fossem suficientes todas essas posturas grotescas, Mendonça, quando ministro da Justiça, não resistiu ao ridículo de tentar enquadrar criminalmente um professor de Tocantins que, por meio de outdoors, afirmou que Bolsonaro vale menos do que um pequi roído. O autoritarismo bolsonaresco não tolera sequer a troça. Evidentemente, de tão patética, essa tentativa de coação de um opositor foi repelida in limine pela justiça. Porém, serviu para deixar claro o tipo de serviço que o indicado para o STF está disposto a fazer em favor do presidente. Mais que um ministro terrivelmente evangélico, Mendonça tem o perfil para ser um ministro terrivelmente pequi-roído.

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