Fora da Política Não há Salvação

Um espaço para discutir política, uma dimensão inescapável de nossa existência. Idealizado pelo cientista político Cláudio Couto.

Fora da Política Não há Salvação

A tirania em construção

A burocracia de Estado se confunde com o governo, o governo se confunde com o Estado, o governo se torna regime

República das milícias. Propagandista do armamento da população civil, Jair Bolsonaro não poupa nem as crianças - Imagem: Neila Rocha/MCTI
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O cientista político Robert Dahl, em sua célebre e fundamental obra Poliarquia, aponta que a democracia se estrutura ao longo de duas dimensões, indicadas na ilustração abaixo.

Uma é a da participação política, entendida como a incorporação cada vez maior ao demos, isto é, ao povo soberano, dos cidadãos adultos, eliminando discriminações que pudessem lhes restringir o direito de votar e serem votados. É esse o componente plebiscitário da democracia, sem o qual ela não pode existir, pois se a plebe (isto é, o povo) é deixada de fora, a política se reduz a um jogo acessível a poucos privilegiados.

A outra dimensão é a da liberalização, ou da competição política. Essa dimensão contempla uma série de aspectos do funcionamento institucional do sistema político: a garantia de liberdades e direitos a indivíduos e coletividades, condições para que a política opere de forma verdadeiramente competitiva e limites o exercício do poder pelos diversos atores políticos. É esse o componente liberal, que faz com que se chame a versão contemporânea do regime democrático (denominada por Dahl como poliarquia) de democracia liberal.

Quanto mais inclusivo e, ao mesmo tempo, mais liberalizado é um regime, mais ele se torna poliárquico – isto é, democrático nos termos em que entendemos hoje a democracia.

Na falta do componente plebiscitário, não há democracia. Há, na melhor das hipóteses, um regime competitivo entre grupos restritos da elite social e/ou econômica. Os regimes liberal-representativos do século XIX em alguns países da Europa, nos Estados Unidos e em ínfimos e efêmeros casos latino-americanos, correspondiam a isso. Constam da Figura 1.2 da Poliarquia de Dahl como oligarquias competitivas.

Em regimes iliberais, a contemplação ampla dos direitos de participação dá a falsa impressão de que ali existe uma democracia

Na falta do componente liberal, mesmo que se contemple uma ampla participação popular, também não há democracia, mas quando muito uma forma de autocracia que apenas contempla a participação nos termos muito estritos dos que ocupam os postos de mando no governo. É o caso de regimes autoritários de partido único que contam, entretanto, com uma ampla gama de instrumentos participativos – como as ditaduras de Cuba ou da antiga União Soviética. Embora não usasse essa terminologia, pode-se dizer que sempre foram regimes iliberais.

A noção de iliberalismo, cunhada há poucos anos pelo autocrata húngaro Viktor Orbán para denominar seu próprio regime – ao denominá-lo como uma democracia iliberal –, supõe exatamente a falta dos mecanismos de freios e contrapesos que limitam o exercício do poder político. Por isso, o iliberalismo inviabiliza a atuação efetiva da oposição, impedida tanto de exercer seu papel de controle do governo como de disputar com chances reais de vitória a conquista dos cargos políticos cruciais.

Em regimes iliberais – que são na verdade regimes autoritários – a contemplação ampla dos direitos de participação dá a falsa impressão de que ali existe uma democracia – ou, ao menos, uma democracia eleitoral, ou uma democracia participativa. Trata-se de uma falsa democracia. Afinal, a soberania popular não pode ser realmente exercida, pois sejam quais forem as preferências populares, elas serão restringidas pela impossibilidade de se apear do governo seus ocupantes de turno, ou contrariar as preferências mais fortes deles.

Num regime democrático, para que a vontade popular se efetive, a alternância no poder precisa sempre ser uma possibilidade, mesmo que não se concretize de fato nas disputas eleitorais, caso o eleitorado assim decida. Quando a alternância se torna impossível (ou quase), esvazia-se a expressão das preferências dos cidadãos por meio do voto, bem como se exaurem de poder real os mecanismos participativos – tornados meros simulacros de democracia, pois são formas tuteladas de participação: é uma participação no vazio. E, não havendo soberania popular, não há que se falar em democracia.

Por isso mesmo, democracia iliberal é um oxímoro, uma contradição nos termos. Se é iliberal, não pode ser democrático; se é democrático, não pode ser iliberal. Note-se que é de liberalismo político que se trata, sem implicações sobre a política econômica adotada ou o tamanho do Estado.

Em seu ataque às instituições do Estado brasileiro, o bolsonarismo mina a cada dia a dimensão liberal da poliarquia brasileira.

Ao deslegitimar o Poder Judiciário, sabota sua capacidade de atuar como um freio aos abusos de poder;

ao cooptar o Ministério Público, impede que atue como um fiscal e um controlador dos excessos do Poder Executivo;

ao atacar governos subnacionais, busca impedir que ajam de acordo com suas prerrogativas federativas;

ao desmontar áreas-chave da burocracia pública, impede que ela cumpra seus deveres funcionais determinados legalmente;

ao criar um governo do segredo, impedindo o acesso a informações de interesse público, impede que os agentes estatais e a sociedade civil fiscalizem e cobrem o Estado.

Por essas ações, o governo Bolsonaro já é um governo iliberal – e tenta implantar de forma definitiva um Estado iliberal no País.

O ataque ao processo eleitoral e à Justiça Eleitoral, deslegitimando-os, é um ataque à dimensão competitiva (e, portanto, liberal) da democracia, pois tem como propósito impor a vitória de Bolsonaro e seus aliados como único resultado aceitável da disputa. Ele visa impedir que a oposição possa cumprir seu papel e – caso seja essa a vontade do eleitorado – possa vencer as eleições. E, claro, caso vença, que tome posse dos cargos políticos cruciais.

Ocorre que, ao gerar tal situação, o governo Bolsonaro ataca a própria dimensão plebiscitária da democracia, pois busca submeter a vontade do eleitorado à sua própria: “se o resultado da eleição não for o que eu quero, então a eleição não vale”. A soberania popular é esvaziada e a participação popular perde sentido, tornando-se mero simulacro.

Os Bolsonaro sabem que o horizonte se fecha após as urnas, por isso devem esticar a corda ao máximo durante o processo eleitoral – Imagem: Andressa Anholete/Getty Images/AFP

Contudo, o presidente da República não faz isso sozinho. Ele produz tal situação em aliança com militares, que durante seu governo foram profundamente partidarizados e cooptados como base de sustentação política do governo. Militares são membros da burocracia de Estado e nessa condição deveriam se manter neutros em relação às disputas político-partidárias. Portanto, não poderiam estar no governo ou na oposição. Bolsonaro os tornou parte do governo e, assim, adversários da oposição.

O problema já seria grave em qualquer área da burocracia pública, sendo ela aparelhada para fins partidários do governante de turno. Ainda mais grave é quando essa partidarização ocorre com membros armados da burocracia, que justamente por lhes terem confiados pela sociedade os instrumentos de violência, detêm uma capacidade de ação desproporcional em relação ao restante da burocracia e dessa mesma sociedade. Noutras palavras, ao aliciar membros das forças de segurança – sejam elas as Forças Armadas ou as polícias – o bolsonarismo as utiliza para tornar a sociedade refém de seus caprichos: “ou bem fazem o que eu quero, ou usarei ‘minhas’ armas contra vocês”. É de usurpação que se trata; é uma forma de tirania, um sequestro.

Isso fica ainda mais evidente diante do fato de que Bolsonaro sempre faz questão de recordar ser ele o comandante supremo das Forças Armadas, ou de “seu exército”, como também gosta de dizer, indicando que um convite às Forças Armadas significa, na realidade, um convite a ele ou a seus subordinados. Quando enfatiza essa questão, Bolsonaro não se refere a seu papel como chefe de Estado, mas como chefe de governo. Entende que como comandante supremo das Forças, elas lhe devem obediência dentro de seu projeto particular de poder. Numa democracia é legítimo e necessário fazer oposição ao projeto particular de poder de um governo. Portanto, se os militares são parte do governo e o presidente os lidera nessa condição, ele usa das Forças Armadas contra a oposição – bem como contra qualquer outro centro de poder que possa lhe impor limites. Bolsonaro as torna sua guarda pretoriana. Novamente, é de tirania que se trata e ela já está aí.

Tal situação foi ainda mais salientada no Ofício do ministro da Defesa, General Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ao TSE, indicando ser ele a autoridade representada na Comissão de Transparência Eleitoral instituída pela corte. Como ele é ministro de um governo, não um mero membro da burocracia de Estado (embora formalmente o fosse até bem recentemente), Paulo Sérgio representa politicamente esse governo. Portanto, era o governo que se fazia representar na Comissão por meio de um membro das Forças Armadas, não o Estado por intermédio de um técnico de sua burocracia profissional.

E há mais. Tendo sido esse membro nomeado pelo ex-ministro da Defesa e provável candidato a vice de Bolsonaro, Walter Braga Netto, a coisa se torna ainda pior, pois isso implica no interesse direto de um concorrente nas próximas eleições no processo eleitoral por meio de um preposto. As oposições não tiveram esse privilégio.

E, como se tudo isso ainda não bastasse, o presidente também expressou o desejo de que as Forças Armadas atuem como fiscalizadoras da apuração dos votos pela Justiça Eleitoral. Ora, isso significa colocar os militares numa posição de fiscais do Judiciário, como se fossem eles um quarto poder – quiçá, como gostariam alguns, um Poder Moderador.

Esse pretorianismo da intromissão militar na política e na justiça já seria suficientemente grave por si só, mas ele é ainda agravado pela partidarização das Forças Armadas durante o governo Bolsonaro. Isto é, pela proposta do presidente não apenas os militares supervisionariam os juízes, mas seu governo o faria, submetendo ao arbítrio do Poder Executivo o cumprimento das funções judiciais e, assim, a própria eleição. Se o processo eleitoral não é deslegitimado pelos militares e compete a eles arbitrar quem ganhou ou não a eleição, implanta-se a ditadura militar – com o “mito” à sua frente. A burocracia de Estado se confunde com o governo, o governo se confunde com o Estado, o governo se torna regime.

Uma vez mais, é de tirania que se trata.

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