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Pelas futuras gerações, o atual sistema da moda precisa ser repensado

Um dos primeiros passos rumo à transição da moda convencional para sustentável é a consciência de impactos, negativos e positivos

Foto: George Cereça
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*Por Cacá W. Camargo

A moda convencional, atrelada à produção insustentável, ao consumismo e ao descarte irresponsável, compromete as necessidades das futuras gerações. Por isso, além de reduzir impactos ambientais e sociais, o atual sistema da moda precisa ser repensado. Soluções puramente técnicas ou mercadológicas não são suficientes. Novos modos, apoiados em princípios que respeitem a equidade intergeracional, precisam ser considerados.

A obsolescência planejada, iniciada nos anos 30 e intensificada no pós-guerra, contribuiu para valorização da novidade, agravando os danos ambientais. E com o modo de produção capitalista instaurado, o incremento da oferta tornou-se maior que a demanda (Queiroz, L. Utopia da sustentabilidade e transgressões no design. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014). A obsolescência pode ser relacionada à qualidade ou a sua função psicológica, esta também pode ser chamada obsolescência de estilo, de desejabilidade, ou gosto, provocando a redução do uso.

Sabemos que esta prática tem sido comum no setor da moda, onde as marcas provocam intencionalmente a obsolescência de determinado produto, lançando novas coleções em espaços de tempo cada vez menores. Segundo o Greenpeace, a cada ano, 80 bilhões de peças de roupa são produzidas em todo o mundo e, após a sua curta vida útil, três de cada quatro roupas acabam em aterros sanitários ou são incineradas, sendo apenas um quarto reciclado.

Também é importante destacarmos as condições precárias dos trabalhadores da cadeia da moda, apesar da existência de normas internacionais, certificações e legislações. É comum o deslocamento da produção industrial para lugares em que os salários são mais baixos e praticamente inexistem leis trabalhistas, resultando em uma cadeia de fornecimento de enorme complexidade, com fábricas espalhadas por várias nações. Com isso, grande parte da responsabilidade pelo bem-estar dos trabalhadores recai sobre os fabricantes terceirizados, fora da influência imediata das grandes marcas.

Segundo os relatórios It’s time for a Fashion Revolution: white paper e Pulse of the fashion industry, o salário mínimo legal, na maioria dos países produtores de roupas, raramente é satisfatório para o sustento de um trabalhador e sua família. Estima-se que o salário mínimo atual em Bangladesh cobre apenas 60% do custo de vida em um bairro pobre do país. E em países como a Índia ou Filipinas mais de 50% dos trabalhadores não recebem o salário mínimo.

Conforme relatório da Global Fashion Agenda e The Boston Consulting Group, se a população global aumentar, como esperado, para 8,5 bilhões de pessoas até 2030, estima-se que o consumo do vestuário aumentará em 63%, ou seja, de 62 milhões de toneladas hoje para 102 milhões de toneladas em 2030 – o equivalente a mais de 500 bilhões de camisetas. Com isso, o consumo de água na indústria convencional aumentaria por volta de 50%, as emissões de CO2 em torno de 63% e a produção de lixo 62%, entre outros impactos ambientais e sociais. Ao mesmo tempo, o mesmo relatório afirma que, se houver uma profunda transformação nesse setor, empregando de modo mais eficiente e diligente os recursos escassos, tratando os trabalhadores justamente e fazendo progressos em uma variedade de questões na cadeia de valor, a indústria da moda terá a oportunidade de criar uma mudança social em larga escala.

Mas por onde começar?

Um dos primeiros passos rumo à transição da moda convencional para sustentável é a consciência de impactos, negativos e positivos. Segundo Manzini e Penin (“Campus: “lab” and “window” for sustainable design research and education. International Journal of Sustainability in Higher Education, vol. 7, iss 1, p. 69-80, 2006), a transição para a sustentabilidade será um processo longo e complexo de aprendizado coletivo no qual todos devem assumir a responsabilidade, entendendo o seu papel nele.

Sim, todos nós podemos colaborar nessa transição. Como cidadãos, podemos repensar nossos hábitos diários, de uso, consumo e descarte; apoiar e/ou participar de iniciativas pró-sustentabilidade, seja no âmbito social ou ambiental. Como consumidores, podemos exigir transparência e práticas sustentáveis das marcas; priorizar o consumo local, autoral e de produtos com menor impacto. Como profissionais, devemos buscar novas alternativas, quebrar paradigmas, considerar os limites do planeta. O posicionamento das marcas também é fundamental nesse processo. Elas podem escolher o protagonismo, apoiando a transformação e o impacto positivo, ou se acomodar com o convencional, destoando do espírito do tempo.

​Como avançar?

A transição da moda só será efetiva se houver novos modos de pensar seu sistema. E isso requer uma nova cosmovisão, que acolhe a prosperidade ao crescimento, a diversidade ao individualismo, a colaboração ao egoísmo, a equidade à injustiça. Desse modo, a mudança de mentalidade afetará não só os elos da cadeia produtiva, mas a própria dinâmica da moda e as relações estabelecidas por ela.

Precisamos imaginar novos cenários, prever novas necessidades, projetar novas soluções. A lógica de produzir sem uma verdadeira demanda, além de produzir estoques, demostra que falhou e quem insistir nesse modelo “morrerá” num futuro próximo. Mais que produtos, serviços e experiências, as marcas precisam aprender a se relacionar com a sociedade e respeitar a natureza. Seus designers devem projetar espaços de diálogo para esse futuro incerto, entendendo que a colaboração é fundamental para equacionarmos essa complexa equação “moda + sustentabilidade”.

Deixamos algumas perguntas para reflexão-ação. Afinal, todos podem apoiar a transição, basta darmos os primeiros passos, dia após dia.

E se os recursos acabarem?

A quem interessa insistir num modelo insustentável?

E se a moda pudesse impactar positivamente?

E se a moda não mudar, morrerá?

*Cacá W. Camargo é designer e consultora em moda sustentável. Graduada em Moda, pós-graduada em Desenvolvimento de Produto, mestre e doutora em Design. Estuda o processo de transição da moda convencional para a moda sustentável, e como o ativismo de design pode catalisar mudanças sociais e culturais. 

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