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Escravidão nada moderna: como a moda pode ajudar a combater o trabalho escravo

A escravidão moderna ultrapassou a questão étnica. Os aliciados hoje são pessoas vulneráveis por estarem em situação de pobreza e guerra

Retrato feito pelo fotógrafo Chico Max, que mostrou o cotidiano de mulheres e suas vidas em oficinas de costuras (Foto: Chico Max)
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Por Dandara Valadares

Economia criativa, crescimento das startups, redução da jornada de trabalho com aumento de produtividade. Quando vemos noticiados casos de trabalho escravo temos a impressão de que estamos vivendo em momentos diferentes da História ao mesmo tempo. De acordo com a Fundação Walk Free, o Brasil tem 369 mil escravos modernos, 1,8 a cada mil habitantes, o que nos mostra que apesar de estarmos discutindo formas de trabalho mais humanizadas para uma parcela privilegiada da população, a cultura da escravidão ainda está presente.

Estamos repensando nosso consumo, encontrando novas formas menos impactantes de se relacionar com o nosso meio, reflexão essencial para enfrentarmos a crise climática e seus desdobramentos sociais. Essa reflexão gerou a macrotendência da economia colaborativa, que abriu novos mercados e revolucionou meios de transporte, serviços de entrega e de hospedagem. Contudo, ao mesmo tempo abriu-se espaço para que a estrutura de trabalho e suas regulamentações sejam questionadas. Essa é uma linha tênue no que se refere a direitos trabalhistas, e que exige cuidado para que seja garantido a longo prazo o bem-estar de todos envolvidos nesse novo sistema.

O Brasil possui leis trabalhistas que são referência internacional no que cerne à garantia da justiça e saúde do trabalhador. De acordo com o artigo 149 do Código Penal brasileiro, são elementos que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana), jornada exaustiva, trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).

A escravidão e a moda

Existem 21 milhões de pessoas em condições de trabalho análogo à escravidão no mundo, de acordo com a OIT (Organização Internacional do Trabalho), apesar de todo os aparatos jurídicos locais e internacionais construídos especificamente para proteger o trabalhador.

A falta da rastreabilidade na produção da indústria da moda facilita que a leis sejam dribladas e faz com que a moda seja o segundo setor que mais explora o trabalho forçado no mundo, ficando atrás apenas do ramo de tecnologia, segundo a pesquisa The Global Slavery Index 2018, da fundação Walk Free.

De acordo com estudo do jornalista Carlos Juliano Barros, para a ONG Repórter Brasil, “no mundo inteiro, marcas de varejo populares e grifes internacionais contratam uma longa cadeia de fornecedores para produzir suas coleções em vez de fabricá-las por conta própria, ou seja, terceirizam a sua produção. Essa é a solução mais simples para se eximir da responsabilidade do pagamento de direitos trabalhistas e encargos fiscais e, então, turbinar as margens de lucro.”

Quanto a quem devemos responsabilizar quando flagramos tais situações, Carlos aponta que “para as autoridades, a responsabilidade da marca é solidária. Isso quer dizer que o trabalhador lesado pode se queixar na Justiça não só contra a oficina contratada, mas também contra a marca que se valeu de seu trabalho não valorizado.”

A convite do Ministério Público, o fotógrafo Chico Max registrou histórias de mulheres que romperam o silêncio para mostrar o cotidiano de suas vidas em oficinas de costuras, trabalho que esteve em exposição no Museu da Imigração em 2019.

Perguntei para Chico quais foram as barreiras que encontrou para chegar até essas pessoas e ele explica que as confecções são uma comunidade fechada, por serem irregulares e por abrigar imigrantes em condições irregulares. “Muitos deles não conhecem a língua, as leis, não tem amigos, trabalham o dia todo. Conheci o CAMI, que é um centro de apoio ao migrante, e eles fazem um trabalho com essas costureiras, de empoderamento, conhecimento das leis e da língua portuguesa. Através deles que eu consegui chegar nas oficinas” conta Chico.

A desigualdade de gênero também é percebida nesse contexto. Nas oficinas visitadas por Chico, mulheres trabalhavam até 16 horas por dia e ainda precisavam ter tempo disponível para alimentar os filhos e cuidar dos afazeres domésticos.

Por que escravidão moderna se mantém?

Diferente da escravidão antiga, em que a lei permitia que uma pessoa fosse tratada como propriedade de outra, a escravidão moderna é baseada no geral no aliciamento de pessoas que, não mais por questões étnicas, são vulneráveis por estarem em situação de pobreza e guerra.

Quando essa pessoa, que está fugindo de situações extremas, se vê na realidade da oficina de costura, ela não se identifica como um “escravo”, conforme nos contou Chico Max:

“Quando a gente pensa escravo vem na nossa cabeça o que aprendemos na escola, escravo é o negro acorrentado. Elas não se veem nessa situação. Não estão acorrentadas, não são agredidas fisicamente, tem ali alguma liberdade para sair fisicamente da oficina. Assim, a pessoa tende a achar que o problema é ela mesma, que é ela que não tem conhecimento suficiente pra ter outra vida, e que o único caminho para ter uma vida melhor é trabalhar ainda mais”.

A reprodução do modelo de escravidão

No filme italiano de 2018 “Lazzaro Felice”, é retratada de forma fascinante a complexidade da escravidão moderna e como poucas pessoas usam seu poder para manter outras na ignorância. O que mais chama a atenção é a retratação de como o modelo de servidão é reproduzido em cadeia. Explico melhor. Uma pessoa que só conhece um modelo de trabalho, entende este como o natural e o vai reproduzir nas suas relações para com outros, e esses outros irão a reproduzir.

Segundo a psicóloga Ana Cláudia Chehab, que é doutoranda em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade Católica de Brasília, “percebe-se que alguns trabalhadores nessas situações almejam chegar ao posto de “gato” ou “aliciador”, ou seja, é como uma promoção. Ganhar a confiança dos patrões e exercer o mesmo tipo de coerção ou até pior. É uma maneira de se ganhar reconhecimento”.

O que podemos fazer?

A conscientização e o empoderamento das vítimas do trabalho análogo à escravidão são tão importantes quanto a punição de seus autores pelo poder público. Esse é o trabalho feito pela iniciativa Deslocamento Criativo, que é fonte de referência para quem quer conhecer e contratar trabalhos na área da Economia Criativa desenvolvidos por pessoas em situação de refúgio em São Paulo, e também favorecer a formulação de políticas públicas dirigidas a esse público. Através de sua plataforma, a iniciativa dá visibilidade e assim empodera refugiados de países do Oriente Médio e da África.

Enquanto indivíduos, precisamos provocar as marcas que consumimos para que sejam mais transparentes em sua cadeia de produção, assim teremos mais ferramentas em nossas escolhas. Mesmo que os comerciantes não saibam a origem de seus produtos, o questionamento precisa ser feito como um primeiro passo para a mudança de cultura.

A advogada e colaboradora do Fashion Revolution Juliana Felicidade pontua que “precisamos ampliar o entendimento de equilíbrio entre quantidade e qualidade, entre preservação e descarte. Precisamos rever a lógica de produção não sustentável, refletir sobre a quantidade de roupas que precisamos ou que queremos, ter uma visão crítica sobre quem faz a roupa e como faz”. Temos que valorizar a cultura da dignidade social e econômica em contraposição com a cultura do consumo. “O consumo é um poder individual que precisa ser redimensionado”, diz Juliana.

Equipe de Comunicação no Fashion Revolution

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