Fashion Revolution

Chamada a cobrar: a moda, o poder e as (re)produções de (in)visibilidade

Me pego pensando por quê? Quais estruturas sociais e discursivas se relacionam e ditam a premência da visibilidade de algumas regiões e a premência da invisibilidade de outras?

Crédito: Fernanda Delfino @fios.de.igapo e @adelffino via @museudoisolamento
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Por: Glícia Cáuper

“Chamada a cobrar. Após o sinal, diga seu nome e a cidade de onde está falando.”

Se você é millennial ou de gerações anteriores, algumas coisas tornam-se previsíveis a partir da frase acima. Não posso prever seu nome, por exemplo. Mas posso ter quase certeza que você já ouviu a frase anterior. Se você é da geração Z ou de gerações posteriores, só posso intuir que você me acha velha, o que não deixa de ser verdade em alguns contextos da contemporaneidade, mas isso não vem ao caso agora.

Sua geração, seu nome, a minha juventude ou velhice, nada disso importa aqui. Mas a sua região, bom, talvez a sua região interesse muito… ou não! Já parou pra pensar em como a sua região é representada nas mais diversas plataformas de coberturas midiáticas do país? E em como o processo da divulgação das informações, realizados por esses meios de comunicação, ajudam a criar e a naturalizar atitudes e opiniões acerca de cada uma das cinco regiões do Brasil?

Como nortista, eu sempre pensei muito a respeito. Sempre tive a sensação de que o Norte era representado de maneira estereotipada e o nortista por sua vez, era apresentando como um espetáculo ou um objeto ou uma coisa, a ser observado por sua “exoticidade”. Na minha concepção, o Norte era apresentado como um bloco homogêneo, onde não havia singularidades, já que, nas poucas vezes que vi o Norte recebendo espaço na mídia nacional, de maneira geral, as matérias eram sobre as florestas, sobre os ribeirinhos ou sobre crimes ou fenomenos ambientais. E quando vi o Norte sendo representado fora do contexto jornalístico, em uma novela pra ser mais precisa, vi uma mistura de sotaques, modos de vestir e de se expressar formando um grande Frankenstein nortista, com retalhos do Amazonas, do Pará, do Amapá, dentre outros estados da região.

Essa sensação, que mencionei anteriormente, do Norte ser estereotipado nos principais veículos de comunicação nacional, somente cresceu com o passar do tempo. Parece que desde sempre eu ouvi ou li comentários sobre “como aqui só tinha índio” ou como “convivíamos com onças e jacarés”. Comentários risíveis até, que talvez por isso nunca tenham me afetado de verdade, não me trazendo qualquer tipo de preocupação em investigar essa “sensação”.

A necessidade de investigação começou a tomar força em janeiro de 2021, quando ocorreu a crise de falta de oxigênio no estado do Amazonas. Naquele momento, eu senti a diferença de espaço e visibilidade dada a questões internacionais e a questões de determinadas regiões do país. No tocante à pandemia, especificamente, pudemos assistir, quase que em tempo real, tudo o que ocorreu na Itália. Equipes jornalísticas inteiras foram destacadas pra aquele país: tínhamos notícias nos mais diversos veículos de comunicação e nos mais variados horários. Enquanto que a crise de falta de oxigênio, ocorrida em solo nacional, não me pareceu ganhar a mesma repercussão e cobertura jornalística.

Mas sensações, pensamentos e sentimentos podem ser traidores, não é mesmo? Lembro que na época cheguei a pensar “talvez eu só tenha sentido esta sensação, porque, pela primeira, vez eu senti tão perto de mim esse horror da pandemia, talvez se não tivesse ocorrido essa crise do oxigênio, eu não estivesse tendo essa sensação” e resolvi “deixar pra lá”, novamente.

Mas, adivinhem só? Em fevereiro deste ano, ela voltou! E voltou com proporções ainda maiores. Há pouco mais de um mês, no dia 22 de fevereiro de 2022, um caso bizarro teve destaque em Manaus: a Polícia Federal deflagrou na manhã deste dia, a Operação Plastina, por meio da qual estavam sendo investigados fatos relacionados a possível prática do crime de tráfico internacional de órgãos humanos.

A plastinação é uma técnica que consiste em extrair os líquidos e os lipídios corporais, substituindoos por resinas plásticas como o silicone, resultando em tecidos secos, inodoros e duráveis. Segundo as investigações, há indícios de que foi postada uma encomenda, contendo uma mão e três placentas de origem humanas, de Manaus com destino à Singapura. Supostamente, a postagem teria sido realizada por um professor da Universidade Estadual do Amazonas e teria como destinatário o designer indonésio Arnold Putra, que vende acessórios e peças de roupas utilizando materiais de natureza humana.

Antes desta polemica do tráfico de órgãos em Manaus, o designer já havia recebido críticas pelo que postava em suas redes sociais e é fácil encontrar prints de imagens que ele mesmo postou em suas plataformas de mídia, nas quais ele costumava relatar que enganava tribos indígenas de todo mundo, inclusive tribos na Amazônia, trocando relógios de luxo falsos pelos artefatos produzidos por essas populações.

É importante destacar, que o caso teve grande repercussão na capital do Amazonas. Já no dia 22 de fevereiro de 2022, quando foi deflagrada a operação policial, ele foi noticiado nos grandes veículos de comunicação da capital. No entanto, o mesmo não ocorreu em todo o território do país. Em um determinado veículo de comunicação de grande repercussão nacional, por exemplo, o caso levou tres dias para ser publicado. O que me levou a uma série de reflexões.

Constantemente, podemos acompanhar, em jornais com alcance nacional, casos relacionados a política em Brasília ou até mesmo relacionados a obras e seus transtornos no transito em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Isto tudo ao vivo, e, se não ao vivo, pelo menos no mesmo dia em que os fatos ocorreram. No entanto, o mesmo não parece acontecer com casos ocorridos no Norte, ainda que estejamos em 2022, ano em que as distancias geográficas são facilmente suprimidas pela tecnologia.

Além disso, voltando ao caso envolvendo tráfico de órgãos e um designer de moda, destaco que ele sequer foi mencionado nas principais revistas e plataformas de moda do Brasil. Revistas que levantam questões como transfobia, PAS (Pessoas Altamente Sensíveis, que problematizam o uso de balaclavas e até mesmo conseguem traçar paralelos sobre a forma de vestir com a queda dos números de caso de covid e com a guerra entre Rússia e Ucrânia, não conseguiram emitir uma “materiazinha” ou fazer um simples post sobre um caso de tráfico de órgãos ocorrido em território brasileiro.

Me pego pensando por quê? Quais estruturas sociais e discursivas se relacionam e ditam a premência da visibilidade de algumas regiões e a premência da invisibilidade de outras? Como acontece o processo de disseminação e ganho de relevância das informações no país? Quantas outras regiões, além do Norte, demandam por visibilidade e representatividade? Quais tipos de relação de poder a disseminação de informação tem construído no Brasil?

Os meios de comunicação são uns dos principais caminhos que levam à representatividade. A forma como eles se estruturam podem proporcionar ao homem local, o “regional”, o poder de se transformar em um cidadão global, unindo as pessoas, diminuindo as distancias territoriais, aproximando culturas e estilos de vida semelhante.

Será preciso ter, cada vez mais, diversidade nos meios de comunicação e também dentro da indústria da moda. Pois além de conferir representatividade e visibilidade, a diversidade permitirá que mais pessoas possam se empoderar, transformando-se em cidadãos globais. Assim, estas pessoas poderão agregar seus talentos ao mundo inteiro e ficarão livres dos oportunistas que antes se apropriam de seus trabalhos e faturavam não apenas enormes quantias em dinheiro, mas também alcançavam status social e poder às custas destas pessoas, que historicamente eram invisibilizadas.

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