Fashion Revolution

A construção de novos profissionais para grandes revoluções

Se a moda é feita por pessoas e para as pessoas, como será a formação desses novos designers e suas contribuições?

A construção de novos profissionais para grandes revoluções. Foto: Pexels
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por Julia Codogno

Como disse o educador, filósofo e defensor do movimento chamado pedagogia crítica Paulo Freire: “A leitura de mundo deve preceder a leitura da palavra”. 

Assim como Paulo Freire, entendemos que precisamos avançar para além de formatos já deteriorados e que ainda se pegam presos aos sistemas e entregas tradicionalistas e que pouco fazem para instrumentalizar futuros profissionais, com capacidades pensantes e estimulados a romper padrões e construírem análises verdadeiramente críticas quanto à sociedade e todas as suas profundas necessidades. 

Ainda nos vemos movidos aos formatos normativos restritos às construções colonialistas-euro-centrais, buscando continuar diálogos distantes de nossas realidades e incapazes de gerar impactos positivos para grande parte do setor. Sendo assim, refletirmos a construção de novos profissionais capazes de iniciar grandes revoluções, pode ser fundamental para avançarmos agendas tão importantes. 

Sempre falamos sobre conduzir novas narrativas, pensar coletivamente e também em nos unirmos para, de fato, construir melhores futuros. Mas será que estamos conseguindo avançar esse discurso dentro da sala de aula? Se fizermos uma pequena retrospectiva do que o mercado de moda se tornou nos últimos anos, vamos ver um setor que, após a revolução industrial, cresceu e prosperou chegando ao modelo capitalista considerado ideal: alta produtividade, investimentos cada vez mais baixos, enforcamento de elos frágeis do sistema, grande visibilidade e alta lucratividade. Um mundo onde “pessoas morreriam (e morrem) para fazer parte”. 

Se cada jovem que inicia seus estudos tem como objetivo se tornar um grande designer com reconhecimento, destaque e a possibilidade de integrar as tais grandes marcas do mercado, tudo isso vai por terra quando logo percebem que a criatividade é uma das primeiras etapas a sofrer os intensos desgastes do universo fashionista. Se deparando com um cenário de ritmo constante em que até 100 coleções são criadas a cada novo ano, além da cansativa procura pela adequação de matéria-prima de menor valor, a contratação de profissionais terceiros, bem como uma cobrança diária para que os resultados sejam exponenciais. Tudo num ritmo frenético, movido por calendários que já não fazem mais sentido e se mostram incapacitados em atender uma demanda que a própria moda criou. 

 

Segundo uma pesquisa realizada pela FIRJAN, com o objetivo de mapear a indústria criativa no Brasil, a busca por formação em Design de Moda cresceu cerca de 14%. Ainda de acordo com o relatório, o levantamento reflete as transformações da nova economia, caracterizada por novos modelos de negócio, hábitos de consumo e relações de trabalho. Vamos resgatar um fator primordial que deixamos escapar entre os dedos: se a moda é feita por pessoas e para as pessoas, como será a formação desses novos designers e quais serão as suas contribuições para a construção de sociedades melhores?  

Hoje, em meio à pandemia e diante de uma das maiores crises humanitárias da contemporaneidade, olhamos para esse cenário cheio de profundas cicatrizes e começamos a ampliar importantes discussões. Semanas de moda foram interrompidas, produções estacionadas, empregos perdidos, pessoas estão desassistidas por contratos ou a mínima dignidade com o cumprimento de legislações básicas em relações trabalhistas, bem como milhares de peças estocadas se deteriorando por causa dos seus “prazos de validade já ultrapassados”. 

E como não falar das transformações ambientais que começaram a ser notadas com essa parada forçada de todo o mundo? China e Índia, responsáveis por grande parte da produção de insumos e diversos bens de consumo, com seus níveis de poluição diminuídos, permitindo que as pessoas se deleitem visualizando o céu azul mais uma vez. O pico da montanha do Himalaia é mais um exemplo: os moradores indianos não o visualizavam desde 1940. Também experienciamos águas ficando mais limpas, animais reaparecendo e taxas de níveis de CO2 – um dos agravantes do aquecimento global – diminuírem drasticamente. Tudo constatando o que falamos há tempos e que agora, talvez, tenha a oportunidade de ser escutado. 

Para isso, retomamos a fala que abrimos esse texto: é preciso instrumentalizar pessoas (antes de profissionais) a enxergarem questões tão preciosas para que as mudanças sejam possíveis. Educar para revolucionar da maneira mais profunda que esse termo puder proporcionar. Propiciar novas narrativas e desconstruir um modelo tão enraizado não é fácil, mas se faz necessário para que, tanto o setor, quanto nós mesmos, continuemos a existir. Caminhar para que a sustentabilidade possa estar inerente a todo o programa curricular e não somente pontuando disciplinas semestrais ou matérias complementares. 

Seria um sonho possível conseguir implementar o olhar crítico e tão inspirador de Kate Fletcher em seu livro “Moda e Sustentabilidade – Design para a mudança”?! Onde, em um de seus capítulos, Kate discorre como uma das formas de pensarmos sustentabilidade: a possibilidade de criarmos e produzirmos moda de acordo com o que nosso território é capaz de oferecer. Numa instigação a utilizarmos produtos de acordo com as matérias-primas cultiváveis em nosso solo, com insumos disponíveis em nosso sistema operacional e mantendo tradições culturais. 

Claro que esse cenário facilmente se transforma em utopia quando olhamos para as facetas da globalização e todos os seus progressos. Mas pensar nessa provocação nos faz entender tudo que deixamos de considerar e percebemos que nos condicionamos para entregar somente o que esse mercado tão conservador e excludente nos possibilitou. 

Como análise ao sistema educacional que temos hoje e ao que podemos construir, se torna fundamental valorizarmos o que temos internamente, possibilitando novos cenários, instigando o senso crítico e a capacidade de pensar coletivamente. Podendo formar profissionais capazes de entender contextos sociais, muito mais que os vislumbres da  história da moda, entendendo que economia e política regem ações e impactam diretamente seus trabalhos e que, nada disso será mais dissociado. 

Pensando programas que incluem a sustentabilidade e todos seus pilares, considerando o processo como fio condutor de entregas, onde serão incentivados a criarem (juntos) soluções e serem agentes de transformação. Por meio de matérias-primas de reuso e de menor impacto, desconstruções estéticas estereotipadas, inclusão de corpos e necessidades, produtos multifuncionais, compreensão real de processos produtivos, reconhecimento das lacunas de toda a cadeia produtiva, legislações em torno do setor e vivências. E como são importantes as vivências! Acreditando que nada será mais valioso e transformador do que possibilitar que alunos vejam de perto o que a indústria é capaz de criar, tanto para o bem quanto para o mal. A sala de aula não é e nem será mais o único condicionante de formação. Será apenas um local de encontro e partida. 

E claro, não poderíamos encerrar essa reflexão sem citar mais uma fala de Paulo Freire que ilustra tão bem esse pensamento: “A educação só é possível quando há escuta”. E, mais do que nunca, precisamos saber quem estamos escutando. 

Fontes: OAC Media | FIRJAN | Business of Fashion Referências Bibliográficas: Fletcher, Kate. Moda e Sustentabilidade: design para mudança / Kate Fletcher e Lynda Grose: Tradução Janaína Marcoantonio – São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011. Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Paulo Freire – São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996. Foto: (ainda a definir) Julia Codogno

Julia Codogno é professora de moda e criadora de conteúdo sobre moda e sustentabilidade. Também criou um guia online que reúne mais de 200 marcas com iniciativas de impacto positivo. Acompanhe @juliacodogno 

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