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Xangô quis assim – Os 60 anos de um rei

Obaràyí, como é conhecido no Brasil e no Exterior, é seu nome de resgate e renascimento, é seu nome de realeza e reexistência

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Quando os olhos azuis fitaram a beleza da noite da Bahia, no céu cheio de estrelas e na pele de seu povo preto, fez-se o encanto. O andar altivo de um menino pobre chamou a atenção do francês. Era a dignidade da memória ancestral. A coroa reluzente se entrevia no alto. Era ouro, era cobre. Era o machado da justiça em riste. Era o Brasil, era a África. Era Xangô renascido no Ori grandioso de Balbino Daniel de Paula. Era Obaràyí, era Aganju, era um rei.

Com a grandeza de Ifá, Pierre Verger enxergou a dinastia, a continuidade, o reino. Oju Obá, o feiticeiro Fatumbi, tomou para si a missão de religar à terra-mãe o filho pródigo. E o velho continente o viu retornar como se nunca antes tivesse partido. Obi, Orobô. Alafiá! “O Rei Me Resgatou”. Xangô Aganju e seu filho Obaràyí. Xangô vivo de novo no “corpo eterno e nobre de um rei nagô”. A negritude em festa nas duas margens do Atlântico. Iemanjá, Olokun e o mar que nos une.

Senhora, “a maior iyalorixá da Bahia e deste Brasil branco, preto, mulato”, a mãe que Oxum concedeu, do alto de sua dignidade de Iyá Nassô, concebe o iaô predestinado em 1959, há 60 anos, para a honra e glória de Afonjá, no grandioso Axé de Mãe Aninha. Destino que se cumpre com as bênçãos de Olokotun, Alapalá, Abounlá e todos os Egun Agbá da Ilha de Itaparica. E os encantados deste chão. Do alto da Serra Negra, Sultão das Matas gritou: “é meu filho, é Obaràyí, é Xangô. Kawô Kabiesile!”

São 60 anos aos pés do orixá, seguindo dignamente pelo chão batido, onde pisaram Stella, Ondina, Menininha, Olga, Massi, Runhó, Cotinha e tantas mães e tantas mulheres e homens que carregavam no corpo a memória da resistência e a vocação de reexistir. Num passado tão presente, pedra sobre pedra se assenta com sangue preto, com o sal do suor dos moleques que traçaram as ruas do Pelourinho, que carregaram os balaios de frutas dos saveiros que chegavam da Ilha. O menino, o jovem, o homem e seu tabuleiro, ganhando a vida na lida dura da cidade baixa. Mas ali se via um rei.

Depois de 60 anos, ele nos brinda com sua história. Depois de 60 anos, ele segue firme governando o Ilê Axé Opô Aganju ao lado de seus Mogbá. E com seus filhos e filhas nos convida para a grande festa. No sábado dia 24 de agosto de 2019, a partir das 9h30, o Ilê Axé Opô Aganju vai celebrar os 60 anos de iniciação do Babalorixá Balbino Daniel de Paula com uma cerimônia afro-cultural que promete emocionar filhos e amigos do sacerdote. Balbino de Xangô, Obaràyí, esse filho de santo da honorável Mãe Senhora. Esse grande amigo de Pierre Verger. Esse grande pai que a Bahia e o mundo veneram.

Obaràyí, como é conhecido no Brasil e no Exterior, é seu nome de resgate e renascimento, é seu nome de realeza e reexistência. É seu nome africano, é seu nome verdadeiro. Na alvorada deste sábado, os clarins vão saudar os primeiros raios do sol e os atabaques vão ressoar o som que desperta a ancestralidade, que instaura o sagrado momento de celebração e alegria. Vai ter alujá, vai ter amalá, vai ter Xangô Aganju unindo a diáspora.

Vai ter uma grande festa pra comemorar a vida e a obra de um sacerdote de nobre linhagem. São 60 anos desde que Mãe Senhora cozeu com a saia de Oxum a roupa do nome. Há 60 anos, os orixás devolviam a Balbino a realeza que a escravidão e o racismo tomaram. Há 60 anos, um rei renascia.

Quem sabe contar essa história? Ela, a ebômi, a mais velha, a griot. Ela, Vovó Cici, companheira da vida e da obra do feiticeiro Fatumbi, o Oju Obá, Pierre Verger. Ela vai se juntar ao Coral do Aganju, com sua voz terna, doce e firme, pra exaltar a trajetória, as dores e as glórias das lutas de Obaràyí. O ator Érico Brás, Mogbá de Xangô, vem pra emprestar sua arte e dar voz ao poema, à epopeia que toma ares de ópera na ária que o cantor Aloysio Menezes vai interpretar. Prenúncio de um lindo dia.

O terreiro como cenário para as exposições “12 Aṣọ do Rei”, que apresentará as vestes sagradas de Xangô, e “Obaràyí: Uma História Religiosa de 60 Anos”, que tem a cuidadosa curadoria da Fundação Pierre Verger e exibirá fotografias que narram a trajetória do babalorixá. O Ilê Axé Opô Aganju, um patrimônio imaterial tombado em 2005 pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, está no Alto da Vila Praiana, no município de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, e espera receber o povo do Axé, do Candomblé, e todos que acreditam no diálogo como caminho para a paz neste dia de celebração e alegria.

Na história de perseverança e resistência do Opô Aganju e seu líder, o exemplo de fé e coragem para enfrentar os séculos sombrios da escravidão e da ameaça fundamentalista desses dias que alimentam a intolerância e o ódio. Ainda é um tempo de luta e, 60 anos depois, o guerreiro segue impávido. Xangô quis assim…

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