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Um povo preto, uma fé baseada em resistências

No Brasil e no mundo, expressões negras da fé cristã sempre se colocaram contrárias ao racismo e ao colonialismo

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*Marcelo Rocha e João Marcos Bigon

É inegável que hoje a religião mais negra no Brasil é a evangélica. Buscando a fundo podemos notar suas raízes e pontos de encontro com a comunidade negra. Da mesma forma, a maldição colonial segue em pleno curso destilando racismo religioso que, para além das tradições de matriz africana, opera também dentro das igrejas evangélicas.

Colocar como central o debate das nossas conjunturas políticas olhando para além das realidades acadêmicas e das grandes universidades é não só urgente, como também parte do comprometimento político com a vida humana. Sobretudo na busca do entendimento do que nossos povos compartilham em suas comunidades enquanto credo, política e estado. Assumir que a igreja evangélica brasileira é negra é se sensibilizar diante de um povo de fé que em meio à opressão de mais de 400 anos encontrou humanização em uma forma de culto ao seu divino na esperança de continuar resistindo através da fé.

A História da Igreja no mundo é um caminho pedregoso onde negras e negros, lutando contra as injustiças que assolava seu povo, resistiram em suas comunidades e fora delas de forma corajosa e estratégica. Aqui mesmo no Brasil, em Recife, Agostinho José Pereira, também chamado de “Lutero Negro”, protagoniza uma caminhada de luta e resistência. Essa caminhada é narrada pelo teólogo e pastor Ronilso Pacheco no seu recém lançado livro “Teologia Negra – O sopro antirracista do Espírito”, que nos conta um pouco da história desse homem que fundou a primeira igreja protestante do Brasil – apesar de não ser contada na história oficial – e foi preso por professar o Deus dos pobres. Outro nome que marca a história negra evangélica é João Cândido, um metodista de São João de Meriti no Rio de Janeiro que no início do século XX liderou a Revolta da Chibata.

No Brasil e no mundo, expressões negras da fé cristã sempre se colocaram contrárias ao racismo e ao colonialismo. Na África do Sul, o bispo anglicano Desmond Tutu, que tanto lutou contra o apartheid e a segregação racial, é um grande exemplo junto de Nelson Mandela que teve educação metodista.

De mesmo modo, nos EUA, o pastor Martin Luther King Jr, mais conhecido por suas marchas, uma clara tradição de alusão ao povo hebreu no deserto, pregava intensos sermões e discursos pró direitos civis na década de 1960, que o fizeram ganhar o Prêmio Nobel da Paz e ser uma das maiores lideranças na luta antirracista estadunidense.

Antes dele, podemos citar mulheres negras como Violet Johnson, uma empregada doméstica que, em 1897, ao mudar-se para um subúrbio branco em Nova Jersey, questiona todos os padrões de raça, gênero e classe, fundando e liderando a Fountain Baptist Church in Summit, isso em meio à nacionalização do Jim Crow – um sistema de castas raciais que funcionava principalmente no Sul dos EUA e defendia muitas leis anti-negros – em que diversos ministros e teólogos brancos utilizavam disso para dizer que os negros eram amaldiçoados por Deus.

Anos depois, do outro lado do país, na Califórnia, o pastor William Seymour inicia o movimento da Rua Azusa, um levante protestante que abre as portas do pentecostalismo no mundo. Entre outros exemplos como Harriet Tubman, espiã abolicionista que coordenava fugas de escravizados usando louvores como código e também Nat Turner, líder de uma das maiores revoltas de escravos dos Estados Unidos.

Muitos ativistas e artistas tem buscado resgatar essas histórias de resistências, renovando e recuperando os relatos apagados em meio ao racismo religioso que está entranhado de forma estrutural na igreja. No teatro, por exemplo, a Cia. Nissi levou mais de dez mil pessoas ao Teatro Brigadeiro com “Rua Azusa: O Musical”, obra que conta a conexão entre o racismo ontem e hoje na igreja protestante.

O texto traz a história de Elisabeth, uma jovem branca que após perder um bebê recorre à adoção de uma criança negra, fato que faz seu esposo e pastor evangélico demonstrar a cultura racista e desmascarar as faces da falsa democracia racial. O palco se faz uma sala de ensaio da igreja onde Elisabeth constrói um espetáculo sobre a vida do pastor William Seymour em que as histórias se cruzam e fazem notável a necessidade da luta antirracista dentro das comunidades de fé.

O espetáculo, dirigido por Caique Oliveira e agora em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, teve lotação máxima em todas as sessões e fez com que no fim da temporada a companhia prosseguisse em seu próprio espaço, o Teatro Nissi (antigo Teatro Brigadeiro) e a ser o primeiro musical gospel a ser indicado como revelação no prêmio Bibi Ferreira, um dos mais importantes prêmios de teatro do País.

No palco político, o MNE (Movimento Negro Evangélico) tem se articulado nas ruas e igrejas brasileiras desde o século XIX. No entanto, desde 2000 há a crescente conexão de vários coletivos e organizações por todo o País. Além de nomes como Ariovaldo Ramos, Nilza Valéria, Marco Davi Oliveira e tantos outros que há mais de duas décadas questionam a colonialidade cristã, existe um movimento fruto da implementação da Década Internacional de Afrodescendentes no Brasil, que tem levado para o seio da igreja questionamentos sobre estética negra, música e cultura. A título de exemplo, os grupos Raiz Coral, Templo Soul e o rapper cristão Pregador Luo há uma década já apontam questões sobre racismo e negritude em suas músicas confessionais.

Ainda assim, no último mês, o Brasil viu mais uma vez o racismo se reafirmar dentro da igreja evangélica brasileira. A CBB (Convenção Batista Brasileira) fez um desserviço à população evangélica, sobretudo à comunidade negra que compõe sua membrana, ao “desconvidar” por motivos ideológicos o pastor Marco Davi de Oliveira e Fabíola Oliveira, ambos negros e evangélicos, para um evento da Juventude Batista que trataria justamente de questões concernentes ao tema do racismo na igreja e fora dela. Isso reforça cada vez mais o convite à luta antirracista em todas suas esferas. É preciso olhar para os lados ouvir a fé do outro sem deixar que essa seja movida pela narrativa colonialista enquanto dominação.

A promoção da justiça deve ser dever de todos e todas.

*Marcelo Rocha tem 21 anos, é evangélico, ativista em Educação e Negritude e graduando em Ciências Sociais. João Marcos Bigon, tem 26 anos, é professor de História, mestrando em Relações Étnico Raciais e coordenador estadual do Movimento Negro Evangélico – RJ.

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