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Sobre gostar de pobres

O que nega justiça aos pobres, não gosta deles, está longe de Deus, e se usa o nome Dele para se promover, aí é escarnecedor

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“Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.” Esta reflexão do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein fica nítida toda vez que o presidente do Brasil vem a público se expressar. Alguns dias atrás, durante a transmissão semanal, ao vivo, em mídia social, o ex-capitão Jair Bolsonaro expressou claramente o que pensa (o seu mundo) em relação ao partido que trata como “inimigo”, o PT, e às pessoas socialmente classificadas como pobres.

Na fala, ele justificou porque deveria vetar emenda do Congresso que devolve a passageiros o direito de despachar gratuitamente bagagem de até 23kg em voos domésticos e internacionais, previsto na Medida Provisória 863/2018. Ao destacar que a emenda foi criada pelo PT, o ex-capitão declarou que não vetaria apenas por ser uma proposta do partido, mas associou o direito dos passageiros às ações do PT: “Eles gostam de pobre, [para eles] quanto mais pobre tiver, melhor”, afirmou, ao vivo, para seus seguidores.

Ao pronunciar que o seu oposto “gosta de pobre”, o presidente do Brasil revela, nas entrelinhas, que ele não gosta, por isso não apenas agirá contra propostas “do inimigo” (ainda que tragam benefícios aos cidadãos que ele governa) como atuará contra estes “pobres”, vetando a emenda. Afinal, nos limites do mundo do presidente, quem não é pobre pode perfeitamente pagar pelo despacho de malas e seguir viajando.

Vamos nos deter aqui na essência da fala do Presidente: há quem goste de pobres e em nome deles oriente suas ações. Não parece ser o caso daquele que no momento ocupa o mais alto cargo do País, pois para ele, esta preferência diz respeito ao Partido dos Trabalhadores. E de quem mais seria?

Neste espaço de CartaCapital denominado Diálogos da Fé, torna-se mais do que apropriado trazer a pergunta para as religiões, particularmente para o cristianismo evangélico, para quem dedicamos a coluna das quartas-feiras.

A visão evangélica é uma fé profundamente orientada pela Palavra de Deus, a Bíblia. Por suas páginas divididas no Antigo e no Novo Testamentos (antes e depois de Jesus), tomamos conhecimento sobre as ações, os ensinamentos e as demandas do Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó (do Antigo Testamento), o mesmo Deus que se fez carne em Jesus de Nazaré (do Novo Testamento).

Em todos estes escritos as pessoas empobrecidas, por conta da divisão desigual dos recursos do mundo e da ganância dos ricos, são expressas como alvo preferencial e prioritário da ação de Deus. A força da luta pela sobrevivência e pela terra, a libertação da escravidão e da opressão do trabalho, a criação de leis de convivência que incluíam a atenção aos pobres e aos desprezados, a emergência de profetas que confrontavam líderes poderosos para denunciar a exploração dos pobres e da pobreza em nome da ganância e do abuso de poder… Tudo isto está nitidamente relatado nas páginas da Bíblia como resultado da ação amorosa e solidária de Deus com os pobres.

O ápice desta preferência se dá na figura de Jesus de Nazaré, interpretado pela fé cristã como Deus encarnado. Em Jesus, Deus se revela pobre: nasce de uma mulher pobre da periferia das terras judaicas, é criado por família pobre e aprende profissão de pobres, sofre discriminação por sua origem, realiza a ação missionária entre os pobres e mostra que temos que aprender com eles a dimensão da partilha, da simplicidade, do despojamento, que dão sentido à vida. Em nome desta causa, Jesus é preso, torturado, morto e enterrado como pobre. A fé cristã na ressurreição se torna a fé de que os pobres podem reviver e renascer das suas mazelas – não adianta matá-los!

Nestes relatos, os ricos nunca foram desprezados – ganham atenção, amor e misericórdia, e são sempre desafiados na sua dificuldade de se engajar na proposta de partilha, simplicidade e despojamento.

As palavras do profeta Jeremias refletem bem esta ênfase que opõe justiça aos pobres à ganância, à opressão e à promoção da morte: “Fez justiça à causa do aflito e do necessitado? Então lhe sucedeu bem. Porventura não é isto conhecer-me? Diz o Senhor. Mas os teus olhos e o teu coração não atentam senão para a tua avareza, e para derramar sangue inocente, e para praticar a opressão, e a violência”. (Jeremias 22.16-17)

Fazer justiça à causa dos pobres, aqueles de quem é retirada a oportunidade de desfrutar da vida, diante da desigualdade, do desprovimento, do fardo pesado da sobrevivência, é sinônimo de conhecer Deus, segundo as palavras do profeta. Quem gosta dos pobres e lhes faz justiça conhece Deus (mesmo que nem saiba que Deus está vendo isto, como está relatado na parábola do Juízo Final em Mateus 25 – “quando o fizeram a um dos meus pequeninos a mim o fizestes”). O que nega justiça aos pobres, não gosta deles, está longe de Deus, e se usa o nome Dele para se promover, aí é escarnecedor.

O profeta Isaías conhecia bem isto e suas palavras ecoam bem no Brasil 2019: “Os mansos terão alegria sobre alegria no Senhor, e os pobres entre os seres humanos se alegrarão em Deus. Pois o tirano é reduzido a nada, o escarnecedor já não existe, e já se acham eliminados todos os que cogitam da iniquidade, os quais por causa de uma palavra condenam um homem, os que põem armadilhas ao que repreende na porta, e os que sem motivo negam ao justo o seu direito” (Isaías 29.19-21).

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