Diálogos da Fé

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Sete anos depois, pai Pérsio vive

Nesta semana começa o ritual de axexê em homenagem a Pai Pérsio de Xangô

Xangô viveu em Pai Pérsio. Hoje, Pai Pérsio vive em Xangô!
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“São Paulo é terra de umbanda”, dizia antigamente o povo do candomblé da Bahia com certo ar de desprezo. De fato, quando os primeiros terreiros foram fundados em São Paulo, a umbanda era uma religião já enraizada e com um número de adeptos bastante expressivo. O surgimento e a consolidação da religião dos orixás em terras paulistas se dá a partir do final da década de 1950, quando Pai Bobó, um babalorixá baiano, descendente do Axé Oxumarê, inaugura seu candomblé na Baixada Santista. Desde então, um sem-número de pais e mães de santo da Bahia e de outros estados do Nordeste vieram se instalar em São Paulo, mudando o cenário das religiões afro-brasileiras na região.

Dessa forma, a noção de que São Paulo era terra de umbanda foi se transformando. Contudo, vale dizer que a legitimação de novos sacerdotes é um outro processo. Os que chegavam de Salvador e tinham algum vínculo com as os terreiros matrizes, como Casa Branca, Gantois, Afonjá ou Alaketu, não encontravam dificuldades para se firmar. Para paulistas, sobretudo os que praticavam a umbanda, o reconhecimento passava por outras questões.

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Muitos sacerdotes de umbanda, na maioria das vezes conduzidos por suas próprias entidades, procuraram o candomblé como uma forma de fortalecer sua prática. Alguns se iniciaram com os pais e mães de santo recém-chegados, outros foram até a Bahia e ingressaram em terreiros tradicionais. Entre os que se destacaram nesse movimento, está Pai Pérsio de Xangô, um paulista de Bauru que construiu sua história na cidade de São Bernardo do Campo, onde há mais de 40 anos fundou o Ilê Alaketu Axé Airá, ou simplesmente Axé Batistini.

Hoje, o Axé Batistini é a maior referência do candomblé de São Paulo e Pai Pérsio pode ser considerado o fundador de um candomblé paulista, o que significa dizer que a forma de praticar a religião nessa região tem certas particularidades, certas especificidades que a diferenciam do culto realizado na Bahia ou no Rio de Janeiro, apesar da relação, muitas vezes direta, entre os terreiros.

Pai Pérsio, por exemplo, foi iniciado na Casa de Oxumarê, em Salvador, em meados da década de 1960, mas nunca negou sua origem umbandista e manteve até o final de sua vida a devoção e o culto aos guias que o acompanhavam desde os 11 anos de idade, inserindo-os no contexto do candomblé. Tive a oportunidade de presenciar algumas vezes Pai Pérsio responder com orgulho à seguinte pergunta: “Pai Pérsio, o senhor foi de umbanda? Fui, não! Sou de umbanda, pois ainda estou vivo!”, reafirmando assim o compromisso com sua velha religião.

A dupla pertença nunca foi um problema para os povos de matriz africana. Mãe Menininha do Gantois, com quem Pai Pérsio deu continuidade a suas obrigações religiosas, e outras tantas ialorixás da Bahia declaravam-se católicas. Em São Paulo, porém, o pertencimento ao candomblé convivia tranquilamente com a prática da umbanda ou a manutenção da fé em suas entidades, com seus cultos introduzidos no candomblé. Essa prática não é exatamente uma novidade. Na Bahia, a presença dos caboclos em terreiros tradicionais (algumas vezes um pouco acobertada) era comum e no Rio de Janeiro é nítida a influência da “macumba” em muitos candomblés.

Ora, se não há novidade, no que Pai Pérsio se diferencia? Por que se tornou uma referência? Por que, sete anos após sua morte, segue mais vivo do que nunca? O próprio Pai Pérsio, filho dileto de Xangô, portanto, pouco modesto, já se dizia predestinado. Era o décimo-segundo filho (doze é o número emblemático de Xangô). Nasceu com uma previsão do Dr. Bezerra de Menezes, guia espiritual de seu pai, que garantiu à mãe que ela teria mais um filho mesmo com idade avançada e já não menstruando. Foi tomado pelo Caboclo Sultão das Matas com apenas 11 anos e apesar da idade assumiu a missão na umbanda. Chegou a Salvador na adolescência e ao assistir a uma cerimônia do candomblé foi tomado por Xangô e só saiu do terreiro devidamente iniciado. Conviveu com grandes nomes da religião, como Mãe Simplícia e Pai Nezinho, responsáveis por sua feitura, Mãe Menininha do Gantois, que deu continuidade a suas obrigações, além de Mãe Rosinha de Xangô e Mãe Bida de Iemanjá, suas grandes professoras, entre tantos outros.

Enquanto alguns ainda torciam o nariz pra umbanda, Pai Pérsio se fez respeitar como grande babalorixá sem nunca abandonar sua antiga religião e seus guias. Quando dava meia-noite na Sexta-feira da Paixão, era a festa de Seu Tranca-Ruas das Almas, que também atendia nas giras semanais. No dia 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura, a Preta-velha Tia Maria vinha dar suas bênçãos. E ao final do ciclo de obrigações de Xangô, era a vez de Seu Sultão das Matas, “um caboclo bravo que tinha bom coração”. Essas celebrações somavam-se aos festejos de Oxalá, Ogum, Oxóssi, à grande festa de Xangô, ao Olubajé, às Iabás, entre outras festividades que atraiam gente de todos os cantos de São Paulo e do Brasil.

Pai Pérsio gostava da boa mesa, da festa, da alegria, do samba. Adorava carnaval e desfilou em diversas escolas e nos afoxés. Depois da folia seguia pra Bahia e comemorava o Ogum de Pai Nezinho, em Muritiba, com grandes babalorixás e ialorixás de Salvador e do Recôncavo. Nem nos momentos de doença e dor deixou de louvar e agradecer seus orixás.

Naquele 14 de dezembro de 2010, numa manhã triste e nublada, Pai Pérsio seguiu ao encontro dos ancestrais. Até então, nunca se tinha visto tanta gente no Axé Batistini. O féretro seguiu em carro aberto, conduzido por batedores e pelo corpo de bombeiros, parando as ruas e avenidas de São Bernardo. Um tapete branco de paz, uma multidão de adeus, olhos rasos, chuva e lágrimas. Sete noites se seguiram, e a honras do axexê louvaram o mais novo ancestral. O orun em festa!

Um ano de luto, um ano de branco. Os atabaques silenciaram, mas em janeiro de 2011 os orixás em festa retornaram ao Batistini e o branco da vida celebrou Oxalá e anunciou que o trono do Ilê Alaketu Axé Airá não estava vago. Havia um rei, havia um babalorixá e cinco herdeiros para zelar pelo seu legado. Pai Pérsio estava vivo, era uma ancestral, um essá pronto para determinar os novos rumos do Axé.

A casa cresceu, tornou-se oficialmente patrimônio histórico e cultural de São Bernardo do Campo. Vieram novos filhos. Laços de espiritualidade e afeto foram reafirmados, a união fez transformações incríveis. A morte não venceu a vida! Aqueles que acreditavam que nunca mais se veria tanta gente no Batistini quanto no enterro de Pai Pérsio assistiram atônitos os festejos de seus 50 anos de iniciação, o jubileu de ouro. Milhares lotaram as dependências e as imediações do terreiro. Um momento histórico neste ano de 2017, que se encerra com o axexê de sete anos, celebrando a vida e a obra de um grande homem, de um grande ancestral. Com muita saudade, mas sem dor nem tristeza.

Xangô viveu em Pai Pérsio. Hoje, Pai Pérsio vive em Xangô! Todas as honras ao Axé Batistini, a grande referência do candomblé paulista!

 

 

 

 

 

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