Diálogos da Fé

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Quem são os evangélicos que rejeitam Bolsonaro?

Muitos não se deixaram seduzir pelos discursos messiânicos assumidos pelo presidente, analisa Magali Cunha

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Meus dois últimos artigos neste espaço, em abril e maio, foram motivados pelas últimas pesquisas de opinião sobre o governo de Jair Bolsonaro, que indicam um certo apoio predominante do segmento cristão evangélico.

A complexidade do processo de produção desses textos, com uma tipologia tentativa, com base em inferências, me levou a duas conclusões. A primeira foi o reconhecimento da necessidade de pesquisas empíricas sobre o tema. A segunda sobre o desafio de pensar o grupo que não apoia Bolsonaro, uma parcela importantíssima, constantemente negligenciada pela cobertura noticiosa e pelos demais grupos de oposição ao governo.

Segundo pesquisa Datafolha de março passado, 35% dos evangélicos do País classificam o governo do ex-capitão como “ruim ou péssimo”. Para um perfil tentativo deste grupo, já se deve afirmar, de início, que reprovar Bolsonaro não significa ser politicamente progressista ou de esquerda. Da mesma forma, foi considerado nos outros dois textos que aprovar o presidente do Brasil não significa ser conservador ou da extrema-direita. Não são equações simples, dada o intrincado mosaico de jeitos de ser, de pensar, de viver, de imaginar o mundo que permeia o segmento chamado evangélico.

Como exercício de reflexão, o monitoramento e a observação de perfis de evangélicos em mídias sociais e grupos de Whatsapp permitem inferir um desenho desta parcela religiosa em, pelo menos, dois grupos.

O primeiro é composto por lideranças (pastores, pastoras, bispos, bispas, presidentes de igrejas e pessoas leigas que têm cargos de poder em suas comunidades de fé), membros das igrejas e simpatizantes que se comprometem com os ensinamentos cristãos baseados no amor e na misericórdia e são sensíveis à crise social, econômica e ambiental que explodiu no Brasil desde 2016.

Com essa base cristã, esses evangélicos não se deixaram seduzir pelos discursos messiânicos assumidos pelo presidente. Muito menos, pelos conteúdos de pânico moral e terrorismo verbal veiculados por ele e por outros líderes religiosos e irmãos da fé que o apoiam, incluídos os de suas próprias igrejas. Por isso, membros ou simpatizantes da fé evangélica com este perfil se opõem às posturas perversas e violentas de Jair Bolsonaro.

Uns tornam essa posição pública em suas mídias sociais, e assumem uma militância de oposição ao governo. Outros silenciam, possivelmente por temor de perseguição interna da parte de líderes apoiadores do presidente ou por terem como característica pessoal “não se meterem em discussões políticas”.

Entre os que silenciam na oposição direta ao governo Bolsonaro, há os que se expressam com manifestações públicas de defesa da vida e do meio ambiente (pela vacinação contra covid-19, contra a liberação de armas, contra o desmatamento, por exemplo). Pertencem ainda a esse grupo um significativo número de evangélicos engajados em movimentos sociais que trabalham com pautas que, diretamente, lhes atingem a vida: associações de trabalhadores, de prestadores de serviços movimentos de sem-terra, sem-teto, de atingidos por barragens.

Nesse grupo, cuja observação indica ser o mais amplo, tanto as pessoas militantes digitais e de movimentos sociais, quanto as mais contidas politicamente, não tocam ou são reticentes em relação às pautas de justiça de gênero, de raça e de valorização da pluralidade religiosa. A sensibilidade com as demandas sociais, econômicas e ambientais fica, boa parte das vezes, limitada às questões em torno das lutas dos pobres, dos desempregados e injustiçados economicamente e com o cuidado com o meio ambiente.

Isso tem relação com a histórica pastoral de intervenção social praticada por igrejas e grupos evangélicos que procura aliviar o sofrimento humano e a destruição ambiental sem enfrentar as estruturas que os provocam. Por isso, no que toca as causas das mulheres, de LGBTI+, da população negra e das religiões não-cristãs, prepondera o silêncio entre estes fiéis. Fica ausente entre estes fiéis uma atuação mais incisiva contra o patriarcalismo, o racismo e o exclusivismo religioso, marcantes desde os tempos do Brasil Colônia, presentes na oposição de muitos grupos e movimentos aio governo Bolsonaro.

Quanto ao segundo grupo de evangélicos que rejeitam a presidência de Jair Bolsonaro, este é composto pelos historicamente denominados progressistas. São pastores, pastoras, bispos, bispas, presidentes de igrejas e pessoas leigas de diferentes lugares do Brasil e podem ser classificados como aqueles que, com base em sua concepção religiosa, defendem os direitos humanos, econômicos, culturais, ambientais, sexuais. Estas pessoas e grupos dão ênfase no enfrentamento da pobreza, na educação crítica e de qualidade, na justiça alimentar, na justiça de gênero (em especial as pautas feministas e LGBTI+), na superação do racismo e da intolerância religiosa, na valorização da pluralidade das religiões e da laicidade do Estado.

Estas expressões progressistas entre os evangélicos brasileiros são antigas e podem ser identificadas com mais intensidade a partir dos anos 1930, quando criada a Confederação Evangélica do Brasil, extinta na ditadura militar. Apesar de marginais (fonte de desconfiança das esquerdas do País; de desrespeito e deboche da parte da maioria conservadora evangélica; desprezadas pelas mídias noticiosas, eletivamente afins aos grupos conservadores), essas expressões se potencializaram durante a ditadura e se constituíram uma minoria inegavelmente importante.

Neste grupo estão as pessoas e grupos participantes de movimentos sociais de trabalhadores urbanos, de sem-terra, de sem-teto, de mulheres, de jovens, de pessoas negras, grupos inter-religiosos, dos diversos partidos políticos e frentes de esquerda, que tornam pública sua oposição ao governo de Jair Bolsonaro.

Entre estes há também gradações. Elas resultam, por exemplo, da observação do maior ou menor engajamento nas causas de direito de gênero, de raça e da pluralidade religiosa. Há pessoas e grupos que atuam diretamente nestas pautas dando visibilidade a mulheres, a pessoas negras, a grupos católicos e de outras religiões em suas articulações.

Há outros que, na prática, revelam que gênero, raça e pluralidade religiosa não são pautas prioritárias, de fato. O extenso número de atividades on-line deste subgrupo, desde 2020, em que é visível o predomínio de presenças masculinas e brancas, e a falta de ênfase a estas temáticas, é um forte exemplo.

Isso pode ter explicação na formação patriarcal, racista e exclusivista que está no DNA do Cristianismo no Brasil, assimilado na educação cristã e teológica recebida por estas lideranças evangélicas progressistas, parcialmente superada em seus engajamentos sociopolíticos.

Uma parcela deste último subgrupo justifica ter que “sacrificar” o tratamento dos temas de diversidade de gênero e de pluralidade religiosa em suas ações para não perder o acesso a um público sensível à necessidade de justiça social, mas que rejeita estas ênfases (estes seu público-alvo é o mesmo primeiro grupo denominado “sensível”, descrito acima).

Certamente há outras gradações que não serão tratadas aqui por limitação do espaço deste artigo, o que instiga ainda mais a pesquisa sobre tipologias, que tentei inferir nas últimas semanas. Fica como aprendizado neste exercício que, quando se trata de religiões, não é possível escapar ao tema da pluralidade e da complexidade delas. Toda e qualquer tentativa de homogeneizar grupos religiosos, quaisquer que sejam em suas expressões e gradações, é tratar de forma enganosa este fascinante e instigante fenômeno social.

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