Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Precisamos urgentemente de gente “do” bem!

‘Se colocar no lugar do outro, inclusive o de se imunizar para enfrentar governantes homicidas’, escreve Magali Cunha

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Estive lendo comentários sobre um vídeo do cantor popular Chico César, postado em mídias sociais no último final de semana. No vídeo, ele entoa a canção “Pico”, marchinha bem humorada, que compôs para expressar a tragédia que o país vive, seguindo a linha de outro compositor brasileiro, Cartola, que cantava “Deixe-me ir preciso andar/Vou por aí a procurar… Rir pra não chorar”.

Em “Pico”, Chico Cesar canta com um sorriso nos lábios: “Eu vou tomar vacina/quem não quiser que tome cloroquina/não vou passar vergonha/quem não quiser que escute esse pamonha…”

Entre os muitos comentários elogiosos, um único crítico me chamou a atenção: era de um pastor de igreja evangélica histórica que registrava “olha aí o maconheiro que a galera gosta!”.

O mau humor do pastor me remeteu de imediato a uma reflexão do escritor israelense Amós Oz, que dizia que nunca viu um fanático bem-humorado, nem alguém bem-humorado se tornar fanático. Para Oz, o bom humor é uma “cura para o fanatismo”.

Depois, ao refletir mais sobre o comentário mal-humorado e maldoso, lembrei-me de narrativas da Bíblia cristã que mostram que pessoas que dizem a verdade são sempre um incômodo e, por isso, são desqualificadas publicamente e perseguidas. Isto acontecia com profetas que falavam em nome de Deus, denunciando a exploração dos pobres, as injustiças contra órfãos, viúvas e estrangeiros, e a hipocrisia de quem dizia celebrar Deus no templo e praticava estes atos abomináveis.

Os profetas Elias e Jeremias tiveram a vida colocada em risco. O profeta Amós foi desqualificado por ser trabalhador informal, criador de ovelhas, e teve as suas palavras de denúncia distorcidas pelo sacerdote Amazias, um pastor da época. Nenhum destes se deixou intimidar.

Jesus também sofreu críticas e perseguição por dizer verdades sobre a religião e as injustiças sociais de sua época, e, também, por agir na contramão de tipos ideais, “gente de bem”, que na sua época eram representados pelos mal-humorados fariseus.

Estas pessoas se baseavam nas oposições entre bem e mal, certo e errado, dirigente e submisso, e muitos outros. Com isso, vão se construindo noções que são sedimentadas na cultura e passam a ser reproduzidas tanto no cotidiano que envolve família, vizinhança e trabalho, quanto nos espaços institucionais que envolvem educação, religião, mídias, por exemplo. Surgem então as concepções de “gente de bem”, “pessoa direita”, “homem/mulher ideal”, situação ou coisa que se deve valorizar. Elas vão marcar justamente os opostos. Pessoas e situações a serem evitadas como “do mal”, “esquerdopata”, “de vida errada/torta”, “má companhia”, “mau exemplo”, “o que se deve rejeitar”.

Poderíamos tomar muitos exemplos aqui, e quem ler este texto pode evocar os seus próprios, que têm relação com esta reflexão. Os “diferentes” ou “fora do padrão” são assim classificados de acordo com valores em torno da aparência, da sexualidade, dos grupos e dos locais dos quais fazem parte, do vocabulário, do nível de educação formal, de ocupação e de renda, da posição política, entre outros aspectos. Tudo isto se reflete em situações do cotidiano, em que pessoas sofrem preconceito, discriminação e até abuso moral (bullying) por serem consideradas “diferentes” ou “não enquadradas” nos tipos estabelecidos para as “pessoas ideais”. São visíveis também nas mídias e na forma como situações são noticiadas ou personagens são representadas em filmes, novelas ou programas de entretenimento.

Jesus, inspiração maior dos cristãos, andou justamente na contramão destas compreensões. Estamos a dias da celebração do seu nascimento, e é sempre bom lembrar que as narrativas dos Evangelhos da Bíblia cristã contam como Jesus era mal visto por ser originário de Nazaré, uma periferia da Palestina. “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré”, foi a pergunta de Natanael sobre Jesus (João 1.46).

Jesus era criticado pelos religiosos por andar com pessoas tidas como impuras, gente que não era considerada “de bem” pela sociedade judaica da época: pescadores, doentes, mulheres, cobradores de impostos, militantes zelotes

Era censurado também por estar mais presente em espaços considerados “não frequentáveis” (a beira-mar, casas de gente “suspeita”); por romper com regras socioculturais e religiosas que excluíam membros da sociedade e/ou os impediam de viver plenamente, incluindo o prazer e o lazer. “Glutão e beberrão” foram adjetivos atribuídos a ele pelas lideranças religiosas, guardiães dos valores da “gente de bem” da época.

Jesus, aquele de Nazaré, viveu uma vida “fora do padrão” da sociedade na qual estava inserido. Seria certamente considerado “mau exemplo”, “má companhia”, “pessoa de vida torta” também em nosso tempo. Em favor da justiça e do valor que ele dava a todas as pessoas, ele estava sempre nos lugares considerados inadequados, com pessoas consideradas “erradas”, acusado de criar tumultos, e de falar e fazer coisas impróprias para a “gente de bem”. Tudo isto porque agia e dizia verdades que precisavam ser ditas.

E aí está um elemento-chave para se pensar neste período do Natal que se aproxima: o que realmente importa na nossa vida em sociedade? Tudo o que Jesus fez e viveu foi pautado nos valores da justiça e da misericórdia. E isto não se alcança com aparência, pureza sexual, origem e local de vinculação, nível formal de educação, ocupação, renda. Isto vem de dentro. Tem a ver com visão de mundo, compreensão da vida e caráter. E tudo isto se reflete na posição política. É mudar a partícula: ser gente “do” bem! Pensar e agir pelo bem de todas as pessoas, não apenas de um grupo em particular, se colocar no lugar do outro, de seu sofrimento e de seus direitos, inclusive o de se imunizar com uma vacina para enfrentar governantes homicidas, os Herodes dos nossos dias.

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