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Por que falamos tanto em fundamentalismo religioso hoje em dia?

Para os fundamentalistas, qualquer pessoa que pense ou se expresse de modo diferente passam a ser identificadas como inimigas

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Já se vai longe o dia em que pesquisadores e estudiosos dos mais diversos setores se deram ao trabalho de analisar detalhadamente o avanço do fundamentalismo religioso presente em inúmeras Igrejas espalhadas pela América Latina. O objetivo de tais estudos eram vários, contudo, um ponto em questão era comum a todos: o crescimento e o avanço de grupos religiosos radicais/fundamentalistas.

Sem a necessidade de grandes esforços, podemos encontrar artigos, reportagens, revistas e livros tratando deste tema. Num dado momento, temos nossa atenção dirigida à uma questão: qual a razão para tanto se falar sobre fundamentalismo religioso em tempos de paz entre as religiões? A resposta pode não ser tão curta quanto a questão formulada. Pode ser composta por argumentos oriundos de diferentes frentes de estudos, que tiveram seu interesse pelo tema despertado a partir de atitudes e discursos adotados por representantes de diversos segmentos religiosos. Mas, como ponto chave para todos podemos indicar a incitação ao ódio e a intolerância promovida por esses grupos a partir do momento em que elegem uma “verdade absoluta” sobre a qual jamais aceitarão qualquer questionamento.

Para os fundamentalistas, qualquer pessoa que pense ou se expresse de modo diferente ao por eles apregoados, passam a ser identificadas como inimigas ou, quando não, como alguém que exige um trabalho intenso de “conversão”. Daí uma dedução pode ser extraída: na medida em que a convivência com o diferente e o aprender com a experiência religiosa do outro não é admitida, o estímulo ao ódio está implantado tendo como argumento fundante a pretensão de serem eles, os fundamentalistas, os donos da verdade considerada absoluta e que fora dela não pode haver salvação.

Nesta esfera de pensamento, o espaço para que cada indivíduo possa ouvir e apreender com franqueza e a partir de então se expressar, torna-se inexistente. O fundamentalismo se aproxima muito de determinadas seitas e fraternidades que se fecham por completo em torno de sua percepção religiosa. Podemos dizer, ainda, que o fundamentalismo chega ao extremo quando sua maneira de pensar e de viver a religiosidade se traduzem em atitudes de violência culminando num projeto de poder, tornando-se uma fonte geradora do extremismo. Deste para o fascismo há um espaço muito pequeno, uma linha muito tênue a ser ultrapassada.

Contudo – e temos aqui um dos pontos mais preocupantes -, as pessoas envolvidas por tais propostas, não se enxergam, em sua maioria, como fascistas por não se enxergarem como tal. A elas, é transmitida a ideia de terem sido chamadas à serem defensoras das “leis de Deus e suas vontades”, as quais lhes são “ensinadas” por religiosos detentores de uma oratória extremamente convincente e da realização de atos religiosos recheados de euforia e emoção.

Não bastasse o modo de pensar, o comportamento de seguidores do fundamentalismo religioso é levado às vias de fato quando se dão ao direito de agredirem verbal ou fisicamente aqueles que deles discordam ou que se dão o direito de se expressarem de modo considerado não ortodoxo.

O exemplo recente destas práticas pode ser extraído do atentado praticado por Eduardo Fauzi que, segundo a Polícia Civil do Rio de Janeiro, foi o responsável pelo atentado praticado contra a produtora do grupo Porta dos Fundos no dia 24 de dezembro de 2019, devido ao programa exibido pelo grupo apresentar, de acordo com Fauzi, ofensas imperdoáveis ao nome de Jesus Cristo: “quando o Porta dos Fundos escarnece do nome de nosso senhor Jesus Cristo ele pisa na esperança de milhões de pessoas que só têm Jesus Cristo como riqueza. Quem fala mal do nome de Cristo prega contra o povo brasileiro. Esse é um crime de lesa-pátria. Eles são criminosos, são marginais, são bandidos”, acusou Fauzi em um vídeo publicado no dia 1º de dezembro. No vídeo divulgado nas redes sociais, Fauzi justificou sua prática por considerar o grupo Porta dos Fundos como “intolerante”.

Ora, quem é o intolerante nesta história? Quem ou qual grupo pode ser responsabilizado por inculcar na cabeça das pessoas tais pensamentos? Que poder de convencimento é esse, que leva as pessoas a praticarem atos de intolerância e ódio contra semelhantes em nome de Jesus Cristo?

Há que se observar que tais práticas, em sua maioria, se dão a partir de grupos que ainda não reconhecem o Evangelho e os ensinamentos cristãos como fonte e raiz de uma vida partilhada e solidária. Antes, preferem manter-se ligadas ao Velho Testamento dando ênfase às passagens que lhes permitem adotar interpretações sobre Deus que o tornam vingativo, violento e raivoso que recompensa àqueles que em seu nome se lançam contra povos e nações que não o têm como Deus soberano.

Hoje, estamos diante de uma ascensão de determinados grupos evangélicos que representam grande perigo para o Estado Laico e a sociedade brasileira devido ao seu potencial fundamentalista, assemelhando-se, excetuando-se os referenciais religiosos nos quais se apoiam, ao fundamentalismo islâmico.

Como nos diz o Reverendo Carlos Eduardo Calvani da Igreja Anglicana do Brasil, “é certo que a grande maioria dos muçulmanos não é fundamentalista; mas os poucos que alcançam o poder cometem barbaridades em nome de sua fé. O fundamentalismo evangélico caminha pelo mesmo rumo. Alguém em sã consciência e com um mínimo de instrução ou sensibilidade consegue acreditar neles e em seus discursos? Somente os analfabetos funcionais, que pouco lêem (aliás, sequer a Bíblia lêem, ou lêem com olhares medievais) os apóiam.

Calvani nos apresenta um quadro que, a princípio, pode parecer exagerado. Mas, se fizermos uma leitura mais aprofundada dos recentes acontecimentos político-religiosos ocorridos em nosso país, chegaremos à mesma conclusão que ele:

“Não nos iludamos. Os evangélicos têm um projeto de tomada de poder na sociedade brasileira. Os evangélicos têm um projeto político muito perigoso para o Brasil. Utilizam as Escrituras Sagradas do modo como lhes convém, para interferir na Comissão de Direitos Humanos, para propor ou alterar leis e infringir descaradamente as cláusulas pétreas da Constituição Federal. Eles se infiltram nos partidos e conseguem ser eleitos para cargos no executivo e no legislativo.

Mas eles não têm fidelidade partidária nem princípios sociais claros. São mesquinhos e egoístas. Seus princípios são os da promiscuidade “igreja-estado”. A bancada evangélica é, comprovadamente, a mais inútil do Congresso Nacional.

No fundo, seu projeto é acabar com as manifestações religiosas com as quais não compartilham, sejam elas católico-romanas, espíritas, do candomblé, umbanda ou de qualquer outra religião que não a deles; desejam interferir na orientação sexual privada das pessoas “em nome de Deus”; fazem acusações levianas de que o movimento LGBT deseja acabar com as famílias; querem dominar o ensino religioso nas escolas públicas e, se conseguirem tomar o poder, não hesitarão em se infiltrar nas forças armadas utilizando o potencial bélico brasileiro para seus objetivos.”

Concordando com Calvani, ousamos incluir os grupos fundamentalistas não evangélicos nesta leitura – por certo polêmica -, altamente contextualizada com nossa realidade. O fundamentalismo que os inflama, chegando ao poder, não tardará em proibir qualquer tipo de manifestação cultural ou religiosa que não se enquadre em suas normas sociais, políticas ou religiosas. E isso o farão em nome do “Deus guerreiro” do Antigo Testamento e seus exércitos sanguinários, excluindo por completo os ensinamentos de Jesus Cristo.

Amor, misericórdia, perdão, respeito aos diferentes, defesa dos menos favorecidos e empobrecidos por uma sociedade excludente, dentre outros, são ensinamentos de Jesus que devemos manter vivos em nossos corações e em nossas práticas. Porém, ao que tudo indica, tais ensinamentos não fazem parte da “doutrina fundamentalista”.

Estamos, isto sim, diante de um cenário assustador no qual dispositivos fascistas presentes na sociedade estão ganhando, paulatinamente, caráter institucional ainda que isso não seja assumido ou demonstrado abertamente. A não aceitação e a consequente eliminação das diferenças; a revogação do respeito à diversidade e o desejo de submeter aos demais as suas vontades e regras, são dispositivos que estão gradativamente conquistando espaço e poder por meio de discursos proferidos por autoridades; de institucionalização na medida em que, formal e socialmente passam a ser reconhecidos pelos poderes existentes em determinadas culturas e sociedades. Trata-se de dispositivos fascistas alcançando status de autoridade.

Tais dispositivos, aliados a outros tantos, impõem aos menos esclarecidos uma norma de vida que se traduz em aceitação das mazelas da vida, do sofrimento, das péssimas condições de vida a que são submetidos. E fazem isso, afirmando ser esta a vontade de Deus, não cabendo aos “fiéis” qualquer manifestação de não aceitação ao “regime imposto” sob a ameaça de serem castigados por questionarem a vontade do Senhor.

O mesmo se dá no viés político-social. Alguém é apresentado como “salvador da pátria”, “mito” ou “profeta” entre o povo que foi escolhido para “reconduzir a nação ao caminho certo”.

Suas palavras e determinações devem ser acatadas e seguidas por todos. O apoio às suas decisões deve ser incondicional e inquestionável. Àqueles que ousarem se posicionar de modo diferente, resta a perseguição e a opressão. Nas mais das vezes, esta postura de oposição ao regime surge entre as mulheres que lutam para terem seus direitos respeitados, os trabalhadores rurais sem-terra que não se conformam diante de tanta terra improdutiva nas mãos dos grandes latifundiários, os assalariados condenados a uma renda mensal insuficiente para manter a família, as comunidades LGBTs que lutam pela dignidade que merecem, os militantes de esquerda das mais diferentes frentes de lutas. Há aqui um perigo muito grande que permeia todos os movimentos sociais ou de classes e, consequentemente, seus apoiadores: o fascismo, aos poucos, vai se apossando de tudo e no final, acaba definindo quais são aqueles que não precisam viver.

Os fundamentalistas intolerantes e disseminadores do ódio conseguem, com certa facilidade, arrebanhar para seu exércitos pseudo-cristãos que desejam impor sobre os outros a dor, o sofrimento, o ressentimento e a vingança. Para esses, o Deus no qual acreditam deve ter a exata imagem e semelhança deles a ponto de odiarem o Deus amoroso e misericordioso que perdoa a todos indistintamente e que nos foi revelado por Jesus Cristo. Insistem em crer que aquele a quem Jesus chamou de Abba” – Papai, denotando uma íntima relação do filho com o pai (Cf. Mc 14,36; Rm 8,15; Gl 4, 6), é cheio de ódio como é o coração e alma doente destes fundamentalistas.

Não podemos negar que toda religião, sem exceção, pode ser interpretada a partir de seus textos fundantes e de suas tradições orais. Tais interpretações podem se dar, geralmente, de duas maneiras: do ponto de vista da inclusão, ou do ponto de vista da exclusão; ou ainda, segundo o professor Daniel da Costa, “do elitismo e hierarquismos dicotômicos do tipo: superior-inferior; puro-impuro; verdadeiro-falso, etc.; ou da justiça real, que implica ‘igualdade de condições e de dignidade’ para pessoas diferentes.”

Vale registrar que uma leitura pormenorizada do Antigo Testamento esclarece que Yahweh, a divindade ali apresentada e a quem Jesus chama de “meu Pai”, é muito mais inclusivo do que excludente. Ainda segundo Costa, “por todos os textos do Antigo Testamento Yahweh chama ao povo de Israel para que seja seu proclamador na face da terra de sua libertação para todos os povos. Libertação com verdadeira justiça que, segundo os profetas, é ação de justiça distributiva para com os pobres, excluídos e injustiçados de toda terra”.

Ao chegarmos ao Novo Testamento nos deparamos com o profeta carpinteiro saído da periferia, Jesus de Nazaré, o próprio Yahweh que se fez carne e habitou entre nós, que com seus ensinamentos e suas atitudes nos revela a verdade: “Deus Pai ama e perdoa infinita e indistintamente de gênero e condição social a todos os seres humanos”.

E ainda mais: faz isso sem exigir qualquer tipo de sacrifício, uma vez que Ele mesmo se ofereceu como sacrifício suficiente, deixando isso claro a todos no alto da cruz ensanguentada.

Infelizmente, os fundamentalistas repudiam a paz de Jesus Cristo, que se fundamenta na verdadeira justiça aos pobres e marginalizados. Parafraseando Daniel Costa, dizemos:

“Os fundamentalistas e outros falsos cristãos querem a guerra, as armas, e a paz de cemitério que é a única alcançada por estes meios. É hora de todos os fiéis de todas as religiões e espiritualidades da terra começarem a ler seus livros sagrados na ótica majoritária da inclusão e do amor infinitos que constam na essência mais íntima destes textos e tradições. É hora de todos os líderes das religiões do mundo aprenderem uns com os outros os diversos nomes que a divindade tem tomado na história a partir dos anseios mais profundos dos homens e mulheres consagrados que descobriram estes nomes e os deixaram registrados como legados, como tesouros inestimáveis de vida e amor exuberantes.”

Contra toda intolerância, todo ódio e toda imposição opressora imposta por aqueles que chamam para si o poder de julgar e condenar, uma força deve ser posta em prática: a força do amor que nos libertou uma vez por todas. “Porque vocês não receberam um espírito de escravos, para de novo estarem no medo, mas receberam um espírito de filhos adotivos, por meio do qual clamamos “Abba! Pai!”. É o próprio Espírito que se une ao nosso espírito para testemunhas que somos filhos de Deus.”(Rm 8, 15)

Encerramos com as palavras do Cristo: “Carreguem minha carga e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para suas vidas. Pois minha carga é suave e meu fardo é leve”. (Mt 11, 29-30)

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