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O luto e a luta em tempos de coronavírus

Doença, idade, fatores de risco, condições sociais, nada disso é condição para a morte. A única condição, de fato, é a vida.

Registro de ritual de purificação do candomblé - Foto: Clara Angeleas/MinC
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O luto pode ser entendido como um rito de passagem, uma vez que a morte, enquanto fato social da maior importância, requer cerimônias que estabeleçam uma mudança de condição para os que ficam e para quem se foi. No candomblé, isso fica ainda mais evidente, porém, em meio à pandemia do coronavírus, a impossibilidade de cumprir as obrigações fúnebres vem ampliando a angústia causada pelo processo da perda. Vivenciar o luto, cumprir os ritos, é uma premissa indispensável para que o ser humano consiga seguir em frente.

Com o aumento considerável do número de mortes, chegam aos terreiros as notícias tristes de que filhos e filhas de santo acometidos pela covid-19 são enterrados sem os cuidados prescritos por nossa tradição. Mesmo os que morrem de outras causas, por conta da pandemia, têm uma série de restrições em seus velórios e funerais.

Como sabemos, os rituais sempre fizeram parte de nossa natureza humana e são fundamentais na concretização da morte. A dor da perda torna-se bem mais difícil quando não há uma despedida adequada. Esse momento demarca a cisão entre a vida e a morte. Externar o sofrimento, abraçar e confortar os parentes e amigos, manifestar o pesar e se despedir são atos que nos valem na elaboração de um novo ciclo.

Os adeptos do candomblé assumem a doença e a morte como uma decorrência da vida. Entretanto, mesmo reconhecendo que um dia tudo se acaba, nem sempre estamos prontos para essa perda. Daí a importância dos ritos, que ajudam a acomodar a dor ao promover a inserção daquele que se foi no mundo dos ancestrais.

Pode-se dizer que nossa tradição concebe a morte de outra maneira: mais natural, mais tangível. Falamos da morte não para expurga-la, mas para restituir-lhe a leveza e reiterar nossa crença na continuidade. Ao conviver com tragédias e violência, o povo negro, sempre desassistido, desenvolveu seu jeito próprio de lidar com a incerteza e a dor.

O nome Lázaro, por exemplo, tornou-se mais recorrente durante as epidemias de varíola, pois acreditava-se que ter na família uma criança com o mesmo nome do santo sincretizado com Obaluaiê ajudaria a evitar ou a vencer a doença. Arun (a doença) e Iku (a morte) devem ser prevenidas, mas é preciso admitir que o ser humano, pelo menos nesta dimensão, não tem o poder de viver para sempre.

Doença, idade, fatores de risco, condições sociais, nada disso é condição para a morte. A única condição, de fato, é a vida. Ao assumir a morte, o adepto do candomblé e, por extensão, o povo negro, seguem na “contramão” daquilo que de certa forma ficou estabelecido especialmente na cultura ocidental, ou seja, sua negação social. Talvez por isso, a reelaboração do luto em meio às lutas cotidianas pela sobrevivência tenha sido uma necessidade, um fator de contingência.

Aceitar é uma condição para seguir, mas é preciso reconhecer o papel fundamental dos ritos nesse processo. A morte nos impõe uma série de obrigações que mesmo antes do novo coronavírus já esbarravam na intolerância religiosa e muitas vezes não podiam ser cumpridas da forma devida.

Dos preceitos que começam no terreiro, passando pela lavagem do defunto, a roupa específica, a preparação do féretro, os atos para “desprender” o orixá da cabeça do iniciado, a devolução do corpo à terra, até a evocação das divindades e ancestrais na celebração do axexê, tudo se dá com uma espécie de desafio ao tempo.

Às vezes, retomar a rotina é uma urgência. A dor nem passa e já tem que dar espaço ao processo de superação. A luta diária de tantas Carolinas e Clementinas de Jesus, de pais e mães que enterram seus filhos e precisam pensar no pão do dia seguinte, é a triste representação do luto negado.

Não é fácil, nunca foi fácil, mas é a vida. Sofrer a dor da perda nesses tempos de coronavírus é um direito suspenso. A garantia dos ritos, que no nosso caso sempre correu o risco de ser contestada, passa a ser uma realidade para todos e a pergunta inevitável é: como ficaremos depois?

Lidar com essa dor num momento em que não se pode sequer colocar uma roupa no falecido, nem velar, nem ver e nem receber um abraço tem tornado a morte ainda mais triste. A impossibilidade de viver o luto deixará marcas profundas. De um modo geral, esses rituais nos ajudam a compreender e aceitar que aquela pessoa partiu.

Além disso, ao introduzi-la no mundo dos ancestrais, trazem o conforto do recomeço, de uma nova vida, em outra condição. O não-cumprimento dessas obrigações dificulta a superação e pode tornar a dor insuportável.

“Na lida a gente esquece.” Para muitos, essa tem sido a única possibilidade de ressignificar o sofrimento. Lutar é a sina do pobre: lutar pela vida, pelo pão de cada dia, pela saúde, pela sobrevivência dos filhos. A dor acha um canto e se acomoda e assim essa gente engole o choro e segue.

A saudade, as lembranças, a alegria do convívio podem encontrar nos ritos um meio de se manter, mas um luto que nem começa e que talvez nunca encontre um tempo para ser vivido, esboça um processo inacabado que passa a impor uma vida incompleta, pela metade. Como a mãe, que ao enterrar um filho também morre um pouco, mas precisa achar força para continuar e cuidar dos que ficaram.

Quando a despedida nos é negada, a morte se mostra muito pior. Esse tempo nos impõe um extremo: não podemos cuidar de nossos doentes, nem velar nossos mortos. Não podemos pacificar a morte, nem recolocar a dor na ordem das lutas cotidianas da vida. Não podemos nos conformar. Ninguém merece morrer na solidão. Essa máxima do candomblé acompanha o processo de finitude e nos permite seguir em paz.

Quando minha tia Milena se foi aos 61, foi preciso elaborar todo processo de adoecimento e morte para confortar nossa família. Para ela, os últimos meses não foram fáceis. A cada internação, ela me esperava com os ebós, as rezas, a nossa fé. Na véspera recebi seu recado, queria me ver, queria muito. Eu a vi e conversamos pela última vez. Ela me disse que estava cansada, sem forças. Eu perguntei se queria descansar e ela me disse que sim. Segurei sua mão e beijei sua testa, ela serenamente cerrou os olhos e dormiu.

No dia seguinte retornei e, com calma, cumpri os trâmites. Segui com sua roupa mais alva, a roupa da nossa tradição. E a vesti. Os olhos abertos ainda me fitavam, e eu os fechei para este mundo, sem dor, sem tristeza, com saudade.

Agora, quando nada disso é possível, vem a notícia do enterro do babalorixá. Bom pai, filho carinhoso, enterrado sem direito a uma flor, sem sua roupa branca, sem seus atos nem rituais. Ia num saco plástico, caixão de lata, feito um indigente. A morte nunca se mostrou tão triste, mas a luta continua.

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