Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

O genocídio negro e os Pilatos das religiões

A discussão sobre o racismo estrutural precisa permear as comunidades de fé

Segurança sufoca jovem negro no supermercado Extra (Foto: Reprodução)

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“Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo e entregou-o para ser crucificado.” – Matheus 27:24

Os tempos são sombrios no Brasil (e no mundo). Ousaria dizer que paira sob a atmosfera brasileira uma energia densa e danosa e isso é muito, muito triste. Populações mais vulneráveis como mulheres, LGBT+ e negros(as), estão sentindo ainda mais na pele – e isso não é figura de linguagem – o reflexo disso.

A cada dois segundos, uma mulher sofre algum tipo de violência. A cada 28 horas, um LGBT+ é assassinado. A cada 23 minutos, um jovem negro é morto no Brasil.

Às vezes, para matar, não é necessário apertar o gatilho – ato, inclusive, facilitado pelo atual governo, que flexibilizou o uso e o porte de armas. Mata também quem dá vez e voz ao horror, que faz chacota, que banaliza a violência, até mesmo a simbólica.

Dois fatos cruelmente racistas chamaram a atenção recentemente. O primeiro foi a “festa” da socialite Donata Meirelles, agora ex-editora de estilo da edição brasileira da revista Vogue. Remontando ao Brasil Colônia, parte de uma elite branca, saudosista e meritocrata esteve na Bahia para um evento luxuoso que contou, por exemplo, com recepcionistas negras, vestidas em roupas que remetiam ao período da escravidão.

As mulheres também eram obrigadas a abanar os convidados brancos sentados em cadeiras que faziam alusão a “tronos de sinhá”. O fato foi desmentido e justificado pela anfitriã ao dizer que, na verdade, aquelas eram cadeiras de candomblé, demonstrando assim total falta de empatia e respeito ao povo do santo, tão perseguido e demonizado. Eis a face do racismo religioso.


Já as imagens do assassinato de Pedro Henrique Gonzaga, jovem negro de 19 anos, morto após ser imobilizado pelo segurança do supermercado Extra no Rio de Janeiro rodaram o Brasil e o mundo, deixando muita gente chocada, especialmente com o racismo por trás do fato.

O jovem foi morto pelo segurança Davi Ricardo Moreira Amâncio, na quinta 14, por asfixia, diante de sua mãe. O caso foi registrado na Delegacia de Homicídios, para onde o segurança foi levado preso e liberado após pagar fiança de 10 mil reais. Ele deve ser indiciado por homicídio culposo, aquele sem intenção de matar.

Embora muita gente tenha se manifestado contra tamanha barbárie, houve os que quiseram justificar dizendo se tratar de um ladrão. Na lógica dos “cidadãos de bem”, gente de menor importância.

Por que será que a morte – execrável – de um cachorro em um outro supermercado gerou mais comoção que a morte de um jovem negro, pobre, dependente químico e periférico?

Por que, para parte da população brasileira, há vidas matáveis, como a do Pedro. Visões como essa contribuem para a perpetuação do racismo estrutural na nossa sociedade, uma vez que é construído por relações de poder e opressão.

Kabengele Munanga

O sociólogo Clóvis Moura e o antropólogo Kabengele Munanga alertam que o racismo brasileiro é um fenômeno estrutural e estruturante das relações socioculturais. Moura coloca no centro do debate o racismo como elemento formador do Estado brasileiro. O antropólogo brasileiro-congolês aborda a falsa democracia racial e as particularidades do Brasil em comparação a outros países.

No Brasil, a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior do que a de um branco, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Cerca de 10 milhões de deslocados de maneira forçada na condição de escravos. Assassinatos em massa de aproximadamente 40 mil ao ano de um único grupo racial. População carcerária composta em 61,6% por esse mesmo grupo étnico.

Representação de 2,1% do corpo de professores da principal universidade do país, a Universidade de São Paulo, e renda média de 59,2% do que recebem os brancos. De acordo com a Fiocruz, 65,9% das mulheres mortas por violência obstétrica, também compõem esse segmento da população brasileira.

Há, em marcha, um verdadeiro genocídio da população negra, como defendem alguns estudiosos e ativistas do movimento negro, entre eles o pesquisador Felipe Freitas.

Nós, os religiosos, temos a obrigação moral de lutar contra todas as formas de opressão, em especial aquelas oriundas de cor e raça. É necessário levantar a discussão, estimular e contribuir para a reflexão e promover ações propositivas para a superação do racismo e do genocídio negro.

É fundamental o diálogo entre comunidades de fé e movimentos sociais, a confecção de material educativo que abordem o combate ao racismo e auxiliem na formação de irmãos e irmãs sensíveis aos problemas sociais.


Há, por exemplo, muito religiosos que gostam de fazer caridade, doar roupas e alimentos, mas são contra a política de cotas. O racismo não pode ser tirado do debate.

Temos de transformar nossos espaços de fé em verdadeiras escolas de ética, cidadania e vivência plena do evangelho. Devemos debater, com base em leituras evangélicas, o racismo estrutural da nossa sociedade branca e eurocêntrica.

Finalizo, recorrendo a sabedoria de Elza Soares: “A carne mais barata do mercado é e continua sendo, a carne negra”.

Qual a nossa ação para mudar isso?

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