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O espiritismo precisa se afirmar antirracista
Temos a obrigação moral de lutar contra todas as formas de opressão, em especial aquelas oriundas de raça e cor
“L.E. 803. Todos os seres humanos são iguais perante Deus? Sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez as suas leis para todos/as. Dizeis frequentemente: “O Sol brilha para todos/as”, e com isso dizeis uma verdade maior e mais geral do que pensais.” – O Livro dos Espíritos, Allan Kardec
O mês de novembro é conhecido como o mês da Consciência Negra. Por esse motivo, ativistas da causa negra e da luta antirracista desenvolvem atividades sobre a temática, estimulando o debate em todos os espaços, até mesmo dentro das comunidades de fé.
Embora esse não seja meu lugar de fala, já que tem muitos irmãos e irmãs negros/as invisibilizados/as a partir de suas próprias narrativas, penso ser importante debatermos – no movimento espírita, inclusive – o combate ao racismo estrutural, a necessidade de ações afirmativas para o povo negro e o estímulo da luta antirracista.
Não basta apenas não sermos racistas, esse é um dever legal, moral e cristão. Devemos ter uma postura antirracista, condenando, combatendo e reprimindo, diariamente, todo tipo de preconceito e segregação por raça e cor, dentro e fora das nossas religiões.
Após essas explicações, peço licença para, enquanto homem branco e a partir das minhas vivências, trazer esse tema para o debate no meio espírita, sabendo que há várias produções e contribuições de pesquisadores/as e educadores/as negros/as na área do direito, da religião e do bem viver, como do pastor Ronilso Pacheco, da Iyalorisa Winnie Bueno e do Prof. Dr. Babalawô Ivanir dos Santos.
Não poderia iniciar o debate sem trazer à tona o triste episódio do racismo de Allan Kardec – fruto de uma visão eurocêntrica da época – e que deve ser debatido e combatido, para não reforçar ideias obsoletas, preconceituosas e anticristãs ainda nos dias de hoje.
Sua postura racista se manifestou por meio de dois textos distintos. Um artigo publicado na Revista Espírita em 1862 e outro, que aparece em Obras Póstumas (portanto não foi publicado por Kardec e talvez ele não o publicasse). O primeiro se chama “Frenologia Espírita e a perfectibilidade da Raça Negra” e o outro “Teoria da Beleza”. Eis o trecho, ao meu ver, mais problemático:
“Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior, isto é, primitiva; são verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já constitui um progresso que levarão para outra existência e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório em melhores condições. Trabalhando em sua melhoria, trabalha-se menos pelo seu presente que pelo seu futuro e, por pouco que se ganhe, para eles é sempre uma aquisição. Cada progresso é um passo à frente, facilitando novos progressos. (Allan Kardec, Perfectibilidade da Raça Negra. Revista Espírita, abril de 1862)”
O espiritismo não é uma revelação sagrada, estanque, “imexível”. Kardec, como qualquer um de nós, cometeu equívocos e certamente, de onde ele está (no plano astral), deve se arrepender de algumas posturas.
Kardec não era racista, Kardec foi racista!
Nas palavras da amiga e educadora Dora Incontri: “Os livros de Kardec não são como a Bíblia é para os cristãos – palavra de Deus, revelada, que pode ser citada como fonte de autoridade absoluta. A obra de Kardec é de pesquisa, em que encarnados e desencarnados participaram da construção. Justamente uma das grandes contribuições de Kardec foi dessacralizar a revelação. (…) O conteúdo do Espiritismo está sujeito à revisão, reelaboração e leituras históricas (compreendendo que algumas coisas que estão nas obras de Kardec são próprias do século XIX, têm uma influência da cultura europeia da época).”
Todo conhecimento é fruto de seu tempo e devemos olhar com cuidado para todas as outras obras de Kardec, que pregou a fraternidade entre todos/as, o amor ao próximo e a igualdade.
Esse racismo estrutural, fruto de uma sociedade patriarcal, branca, heteronormativa, machista e preconceituosa, se manifesta, também, em pequenas brincadeiras, em chacotas, em olhares.
O sociólogo Clóvis Moura e o antropólogo Kabengele Munanga alertam que o racismo brasileiro é um fenômeno estrutural e estruturante das relações socioculturais. Moura coloca no centro do debate o racismo como elemento formador do Estado brasileiro. O antropólogo brasileiro-congolês aborda a falsa democracia racial e as particularidades do Brasil em comparação a outros países.
Nós, os/as religiosos/as, temos a obrigação moral de lutar contra todas as formas de opressão, em especial aquelas oriundas de raça e cor. É necessário levantar a discussão, estimular e contribuir para a reflexão e promover ações propositivas para a superação do racismo e do genocídio negro.
É fundamental o diálogo entre comunidades de fé e movimentos sociais, a confecção de materiais educativos que abordem o combate ao racismo e auxiliem na formação de irmãos e irmãs sensíveis aos problemas sociais. O racismo não pode ser tirado do debate no campo da fé.
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