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No candomblé, envelhecer é uma dádiva

Como dizia a saudosa Mãe Stella de Oxóssi, o velho é um herói, pois conseguiu vencer a morte que nos procura e ronda todos os dias

Festa de Santa Bárbara reúne milhares de devotos no Pelourinho (Foto: Elói Corrêa/GOVBA)
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No candomblé, a velhice é sempre um ideal a ser atingido. Inclusive determinados elementos, como improdutividade, declínio físico e morte iminente, que constituem o modelo (negativo) de envelhecimento socialmente sugerido, nos terreiros passam a ser valorizados, uma vez que aproximam os “mais velhos” da ancestralidade – princípio sagrado e fonte de poder em nossa tradição.

Existem no candomblé categorias específicas de hierarquia e poder, entre elas a dos “mais velhos”, que é, sem sombra de dúvidas, a de maior prestígio. Por se tratar de uma religião calcada nos princípios de senioridade e ancestralidade, a idade é considerada um fator preponderante na aquisição de conhecimento, tornando-se sinônimo de autoridade e força.

De acordo com o que se diz nos terreiros mais tradicionais, “idade é posto”. Isso significa que o lugar ocupado por alguém na hierarquia, isto é, o seu cargo, pode variar em seu grau de dignidade conforme o tempo de iniciação e de vida do postulante, o que, na prática, significa que quanto mais velho, mais alta e prestigiada a função de uma sacerdotisa ou sacerdote.

Apesar de ser um importante indicador na compreensão da velhice, a idade nos terreiros de candomblé não está relacionada apenas ao tempo cronológico. É preciso lembrar que estamos falando de uma religião iniciática, na qual o tempo de iniciação, que presume todo aprendizado adquirido ao longo dos anos, a memória, as vivências e os saberes transmitidos pelos “mais velhos” é fundamental na construção da autoridade e na manutenção do poder.

 

Disso podemos concluir que nos terreiros de candomblé “saber é posto”. Portanto, entender a categoria dos “mais velhos” nessa religião é uma tarefa complexa, sobretudo quando levamos em conta a forma como estão imbricados idade, senioridade, poder e saber. A dificuldade para explicar não reside na resolução de uma equação aparentemente simples que relaciona idade ao conhecimento, mas nos significados isolados de cada elemento e nos sentidos que vão adquirindo na prática de uma religião repleta de particularidades.

O candomblé vê e define os mais velhos de uma forma diferenciada, e esse é outro exemplo da maneira africana de pensar o mundo e as coisas. Na síntese de Roger Bastide, tudo no candomblé é símbolo e imagem. De onde decorre a seguinte pergunta: o que simbolizam os mais velhos? Considerando que os povos africanos concebem o universo como feito de energia, isso significa que toda matéria é portadora de axé, isto é, do poder de realizar, da força vital que se faz presente em todas as coisas, percorrendo também os grupos familiares e apresentando-se nos vivos e nos ancestrais.

Envelhecer é um mérito. Como dizia a saudosa Mãe Stella de Oxóssi, na cultura iorubá, o velho é um herói, pois conseguiu vencer a morte que nos procura e ronda todos os dias. Como se pode perceber, em nossa tradição, o significado de ser velho é bem outro e até a morte, enquanto condição para se tornar um ancestral, é vista positivamente. Aliás, de acordo com a filosofia iorubá, “os iniciados no mistério não morrem”. O axexê, ou seja, o ritual mortuário do candomblé, nada mais é do que a obrigação que faz do iniciado um ancestral. É, ao mesmo tempo, o rito derradeiro e o início de um novo ciclo.

Partindo da premissa básica de que a velhice é uma categoria socialmente produzida, obviamente percebe-se que sua concepção varia em sociedades e culturas diferentes. No candomblé, isso se verifica com muita clareza, já que o velho é considerado um sábio e possui uma condição de destaque e respeito. Nos terreiros, reverenciá-los é uma obrigação ritual. Nenhum iniciado deve tomar a frente de um mais velho, pois todas as suas prerrogativas devem ser rigorosamente observadas. Suas palavras e seus conselhos devem ser ouvidos e seguidos à risca.

Não se pode esquecer dos aspectos físicos do processo de envelhecimento, mas no candomblé todas as dificuldades que a velhice acarreta estão longe de remeter à ideia de fragilidade ou desgaste. Por mais que a velhice imponha certa precariedade, não se deve relacioná-la ao fim de maneira simplista. Nos terreiros, o velho é visto como aquele que venceu a morte e persiste, que é duradouro e merece viver ainda mais, tornando-se um ancestral, o que significa, em princípio, tornar-se eterno.

Os terreiros de candomblé resguardam valores e ideias próprias de um grupo, de uma cultura herdada de seus antepassados e ancestrais africanos. No entanto, esses valores nem sempre encontram correspondentes na sociedade mais ampla, sobretudo quando consideramos que a cultura dos negros escravizados foi menosprezada, alijada e perseguida. Contudo, tendo permanecido nessas comunidades religiosas ou em outros territórios de resistência que comungam dos mesmos princípios, como os quilombos, influenciaram decisivamente o modo de vida nas periferias do Brasil.

Enxergar a velhice como uma possibilidade de realizações depende, em grande parte, da maneira como o sujeito idoso se relaciona com seu próprio grupo. O vínculo com os mais novos, por exemplo, deve tornar-se produtivo, mas para isso é necessário que os velhos repensem as relações e que os jovens comecem a ver a velhice como algo interessante.

É certo que existem algumas especificidades no campo do envelhecer, uma delas é que a velhice contemporânea está cheia de contradições. Há mudanças significativas de ordem social, cultural, econômica e mesmo subjetiva que podem interferir diretamente no grupo, mas os terreiros seguem reconhecendo a importância de seus mais velhos num exemplo de integração que valoriza a vida até o último instante.

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