Diálogos da Fé

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Gente “de” bem? Precisamos de gente “do” bem!

Jesus de Nazaré viveu uma vida “fora do padrão” . Hoje, seria certamente considerado “mau exemplo”, “má companhia”

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Quem se lembra de uma das expressões que marcaram manifestações públicas no Brasil dos últimos anos, tanto nas ruas quanto nas mídias sociais? “Somos gente de bem” ou “convocamos todas as pessoas ‘de bem’”. São expressões também muito comuns nos meios religiosos.

Certamente, quem se afirma “gente de bem” se coloca em oposição a um tipo de gente relacionada ao mal: “gente do mal”.  Claro que não falamos assim, mas esta partícula “de” faz toda a diferença nesta compreensão.  

Inicialmente, “gente de bem” era quem pedia o fim da corrupção. Mais recentemente, são aqueles que pedem “decência” em exposições de arte e queimam simbolicamente intelectuais que defendem a justiça de gênero. São, por larga maioria, de acordo com pesquisa de institutos reconhecidos, brancos, de classe média, com educação superior. Em oposição, “gente de mal” seria o grupo que tem um “não” na frente de cada item de perfil listado acima.

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Aí está exposta uma das marcas das sociedades ocidentais cristãs que é a formulação de tipos ideais, nos quais todos os membros devem se enquadrar, ou sofrerão exclusão e preconceito. Normalmente a formulação destes tipos se baseia em valores historicamente estabelecidos pelos grupos sociais dominantes dos pontos de vista político, econômico e cultural (governantes, classes sociais, mídias, por exemplo). São ainda baseados em uma visão dualista (binária) do mundo. Ou seja, o mundo é visto a partir de dois elementos opostos e indivíduos e situações são enquadradas em um polo ou outro, construindo-se então valores e, a partir deles, os tipos.

Entre esses dualismos estão as oposições entre bem e mal, certo e errado, direita e esquerda, dirigente e submisso, e muitos outros. Assim, vão se construindo noções que são sedimentadas na nossa cultura e passam a ser reproduzidas tanto no cotidiano que envolve família, vizinhança e trabalho, quanto nos espaços institucionais que envolvem educação, religião, mídias, por exemplo. Surgem então as concepções de “gente de bem”, “correta”, “homem/mulher ideal”, situação ou coisa que se deve valorizar. Elas vão marcar justamente os opostos. Indivíduos e situações a serem evitadas como “do mal”, “de vida errada/torta”, “má companhia”, “mau exemplo”, “o que se deve rejeitar”. Quem nunca ouviu uma ou outra dessas expressões, de tom positivo ou negativo, sendo indicada como um valor a ser assumido na vida, que molda comportamentos e relacionamentos?

Poderíamos tomar muitos exemplos aqui, e quem ler este texto pode evocar os seus próprios, que têm relação com esta reflexão. Os “diferentes” ou “fora do padrão” são assim classificados de acordo com valores em torno da aparência, da sexualidade, dos grupos e dos locais dos quais fazem parte, do vocabulário, do nível de educação formal, de ocupação e de renda, da posição política, entre outros aspectos.  Tudo isto se reflete em situações do cotidiano, em que seres humanos sofrem preconceito, discriminação e até abuso moral (bullying) por serem consideradas “diferentes” ou “não enquadradas” nos tipos estabelecidos para os “tipos ideais”. São visíveis também nas mídias e na forma como situações são noticiadas ou personagens são representadas em filmes, novelas ou programas de entretenimento.

Interessante que apesar de serem valores da sociedade ocidental cristã, vale a pena recordar que a referência maior do cristianismo, Jesus de Nazaré, andou justamente na contramão destas compreensões. Estamos a dias de celebrarmos o seu nascimento, e é sempre bom lembrar que as narrativas dos Evangelhos da Bíblia cristã contam como Jesus era mal visto por ser originário de Nazaré, uma periferia da Palestina no seu tempo (já escrevi sobre isto aqui na Coluna Diálogos da Fé). “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré”, foi a pergunta de Natanael sobre Jesus (João 1.46).

Jesus era criticado pelos religiosos por ter impuros entre seu séquito, gente que não era considerada “de bem” pela sociedade judaica da época: pescadores, doentes, mulheres, cobradores de impostos, terroristas zelotes.

Era censurado também por estar mais presente em espaços considerados “não frequentáveis” (a beira-mar, casas de gente “suspeita”); por romper com regras socioculturais e religiosas que excluíam membros da sociedade e/ou os impediam de viver plenamente, incluindo o prazer e o lazer. “Glutão e beberrão”, foram adjetivos que lhe foram atribuídos pelas autoridades religiosas, guardiães dos valores da “gente de bem” da época.

Jesus de Nazaré viveu uma vida “fora do padrão” da sociedade na qual estava inserido. Seria certamente considerado “mau exemplo”, “má companhia”, “homem de vida torta” também em nosso tempo. Estava sempre nos lugares considerados inadequados, com cidadãos considerados “errados”, acusado de criar tumultos, e de falar e fazer coisas impróprias para a “gente de bem”.

E aí está um elemento-chave para se pensar neste período do Natal que se aproxima: o que realmente importa na nossa vida em sociedade? Tudo o que Jesus fez e viveu foi pautado nos valores da justiça e da misericórdia. E isto não se alcança com aparência, pureza sexual, vocabulário, grupos e locais de vinculação, nível formal de educação, ocupação, renda. Isto vem de dentro. Tem a ver com visão de mundo, compreensão da vida e caráter. E tudo isto se reflete na posição política. É mudar a partícula: ser gente “do” bem! Pensar e agir pelo bem comum, se colocar no lugar do outro, de seu sofrimento e direitos.

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