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Evangélicos alcançam protagonismo e visibilidade. A que preço?

O que vemos são evangélicos crescendo em visibilidade mas o Cristianismo parecendo diminuir

Foto: Alan Santos/PR
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Há muita celebração entre grupos e lideranças evangélicas pelo protagonismo alcançado pelo segmento no País. Afinal, o presidente da República, Jair Bolsonaro, tem cumprido fielmente sua parte na aliança firmada desde 2016, quando foi batizado pelo político pentecostal Pastor Everaldo nas águas do Rio Jordão em Israel, rumo à candidatura ao Planalto.

A pastora pentecostal Damares Alves ganhou a direção do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O Ministério da Casa Civil foi ocupado pelo luterano Onyx Lorenzoni e o Ministério do Turismo é conduzido pelo pentecostal Marcelo Álvaro Antônio. O ministro da Advocacia Geral da União é o pastor presbiteriano André Luiz Mendonça e o recém-nomeado ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, é um batista. São cinco evangélicos no primeiro escalão do governo federal, fora o número significativo de alocados no segundo (escrevi sobre isto na coluna aqui e aqui).

No Congresso Nacional, dois evangélicos ocupam funções estratégicas: a deputada federal batista Joyce Hasselmann (PSL-SP) é a líder do governo e o deputado Pastor Marco Feliciano (Podemos-SP) é um dos vice-líderes e “porta-voz informal” do presidente.

Soma-se a visibilidade que evangélicos alcançaram no Judiciário, especialmente com o messianismo criado em torno da Operação Lava Jato, alimentado pelas figuras do procurador batista Deltan Dallagnol e do juiz federal do Rio de Janeiro, o pentecostal Marcelo Bretas.

Elementos simbólicos construídos durante os sete meses de governo alimentam o “orgulho evangélico”. Houve a primeira participação de um presidente da República na massiva Marcha para Jesus de São Paulo (junho), a recente declaração do ex-capitão de que nomeará um ministro para o STF que seja “terrivelmente evangélico”, e abertura de espaço na disputada agenda para que o presidente, em cinco dias, comparecesse a diversos eventos de igrejas evangélicas.

 

É expressivo o protagonismo deste segmento no espaço público. A pergunta que não quer calar é: a que preço? Afinal, parece inconcebível que pessoas que se digam seguidoras do Cristo de amor, misericórdia, compaixão, justiça e paz empenhem apoio incondicional a quem promove ações de estímulo ao ódio e à violência, ao preconceito, nega direitos e usa gestos e palavras baseados em mentiras e grosserias. E pior: sejam indiferentes aos efeitos nefastos que estes atos provocam.

É inconcebível! Quem afirmava isto, ainda nos anos 40, era um dos mais importantes pastores e teólogos evangélicos do século XX, Richard Niehbur (1894-1962), que, nos EUA, entre muitas obras, publicou em 1948 o ensaio “A responsabilidade da igreja pela Sociedade”, no livro “O evangelho, o mundo e a igreja”.

Para Niehbur, afirmar a responsabilidade social das igrejas é afirmar a essência do ser cristão e a fidelidade aos propósitos de Deus para este mundo baseados na misericórdia e na justiça. Daí a compreensão de que responsabilidade inclui serviço e cuidado com as coisas que pertencem à vida de todos os seres, sem exceção.

Dessa premissa surge um desafio: “Um grupo que não reconhece sua obrigação de prestar contas a Deus [revelado na pessoa de Jesus] pode-se chamar igreja mas (…) falta a esse grupo a realidade moral da Igreja. Ela pode ser uma associação religiosa de alguma sorte mas não é igreja no sentido histórico da palavra”.

O pastor reformado olhava para duas realidades do seu tempo: o nazismo, na Alemanha, e o racismo, nos Estados Unidos. O inaceitável apoio de igrejas a estes sistemas (ativamente ou por omissão) é identificado por Niehbur como irresponsabilidade de igrejas que “caíram em tentação”.

“Ao invés de ‘O que Deus quer?’ a questão na mente da igreja que caiu em tentação é ‘O que a nação ou a civilização quer?’ (…) A igreja que caiu nesta tentação (…) presta contas [não a Deus mas] a homens”, diz Niehbur.

 

Ele afirma ainda que as igrejas irresponsáveis tentam “gerar uma ‘dinâmica moral’ por meio de culto, alívio das tensões por meio de ajuda com oração e estimular a ‘boa vontade’ por meio de meditação. (…) Elas substituíram Deus pela civilização e pela sociedade…”

Como este pastor parece viver e falar para os nossos dias no Brasil! Deus foi substituído por espaços de poder negociados com “mitos” e os valores cristãos e a dimensão profética da denúncia e do chamado ao arrependimento dão lugar aos interesses de reconhecimento público e poder. O que vemos são evangélicos crescendo em visibilidade mas o Cristianismo parecendo diminuir. Este é o preço do poder: um Cristianismo “vendido”, “sacrificado a ídolos”.

Afinal, para os não-cristãos, fica o antitestemunho da falta de misericórdia e indiferença com as tragédias em aldeias e presídios, com o desmatamento; da subserviência aos “mitos”; da ganância de quem diz “vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade” (Deltan Dallagnol); das risadas frente ao gesto do presidente da República simulando uma execução com arma de fogo; da corrupção e da violência praticadas por autoridades públicas (Marcelo Álvaro e o “caso dos laranjas”); do abuso dos recursos públicos, como o tratamento dentário de 150 mil reais do Pastor Marco Feliciano.

É preciso atentar para as minorias evangélicas que questionam este processo e agem em fidelidade ao Deus em Jesus, amoroso, misericordioso e justo. Por certo, estas pagam um preço, não vendem. Recentemente um pastor e uma leiga, negros, foram impedidos pela liderança da Convenção Batista de falar em um congresso de jovens da igreja sobre racismo, apesar de divulgados os seus nomes e o tema na programação. São igrejas que substituem Deus pelo autoritarismo, pela censura e pelo preconceito de seus ídolos. Evocando Niehbur, caem em tentação. Ainda há tempo de arrependimento e conversão!

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