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Damares Alves, a ministra evangélica que promove amnésia social
Fica nítido o projeto de promoção do esquecimento da violência perpetrada pelo Estado no período da ditadura
Soubemos pelas mídias noticiosas, nesta semana, que o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, capitaneado pela pastora pentecostal e advogada Damares Alves, declarou oficialmente não ter “dever algum” de investir recursos públicos na construção de um Memorial da Anistia.
A declaração foi feita ao Ministério Público Federal (MPF) que havia questionado a pasta de Damares Alves sobre o fim das obras do museu, realizadas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), financiadas pelo governo federal, sob sua responsabilidade.
O texto apresentado ao MPF diz que a construção de um Memorial da Anistia é “contraditória nos seus termos”, já que anistia “significa ‘esquecimento’” e que “um Memorial da Anistia seria algo como o Memorial do Esquecimento”.
Esta declaração se soma a outros atos do próprio ministério que tem criado barreiras à continuidade das ações em prol da memória e da reparação das atrocidades que o Estado brasileiro cometeu no período da ditadura.
Questionado sobre as mudanças que emperram processos de justiça e reparação, o presidente da República justificou: “O motivo é que mudou o presidente, agora é o Jair Bolsonaro, de direita. Ponto final”. Neste discurso, fazer justiça é coisa de esquerda política.
Fica nítido o projeto de promoção do esquecimento da violência perpetrada pelo Estado no período da ditadura, e que tem feridas abertas, nunca saradas, e estão cada vez mais latejantes.
Os memoriais têm o papel importantíssimo na preservação da memória social dos povos. São muito antigos e tomam diferentes formas. Grupos religiosos, entre os tantos grupos sociais, são alimentados de memória e de memoriais. Na tradição cristã, por exemplo, a eucaristia é ritual destacado como memória da vida e da morte de Jesus (Lucas 22.19), bem como as festas religiosas que demarcam episódios que não devem ser esquecidos.
Fato é que passado e memória são determinantes para a identidade de um grupo e para sua existência. Lembrar ajuda a animar e avaliar o presente e a projetar o futuro. Lembrar é também atribuir novo sentido ao que deu certo e corrigir o que não deu.
Por isso, diz o teólogo Rubem Alves, “a memória tem uma função subversiva. (…) Talvez que a memória das esperanças já mortas seja capaz de trazê-las de novo à vida, de forma que o passado se transforme em profecia e a visão do paraíso perdido dê à luz a expectativa de uma utopia a ser conquistada” (em Dogmatismo e Tolerância, Ed. Loyola, 2004).
Já o esquecimento, para além da perspectiva patológica (involuntária) ou emocional (quando se escolhe o que lembrar e o que apagar da memória), pode ser de ordem social. Neste caso, pode ser provocado, fruto de conflitos e divergências, de manipulação exercida por grupos dominantes sobre dominados, ou de vencedores frente a derrotados.
Promover o esquecimento é apagar as referências do passado para que elas não impeçam a aceitação de novas formas impostas por quem domina processos sociais. Isto é o descarte da memória que anima e projeta, com a promoção do contrário, de uma amnésia social. É assim que a história passa a ser frequentemente oficializada e contada a partir da perspectiva dos vencedores e líderes, deixando a memória das minorias, ou dos vencidos ou liderados relegada ao esquecimento.
Esta promoção oficial do esquecimento pode também servir a uma espécie de acordo social para que um determinado grupo ou sociedade supere conflitos e lutas: a anistia. O processo de anistia é o resultado de um consenso em torno do esquecimento de conflitos vividos, em prol de uma convergência, de uma harmonia social.
Na origem da anistia, na Atenas da Grécia do século V a.C., o termo tinha dois sentidos: a “interdição da lembrança de infortúnios” e a prestação de um juramento de que os infortúnios não seriam lembrados. “Lembrar os infortúnios” passa a ser considerado um ato de represália, vingança. Esquecer e apagar a memória, aqui, seria a restituição de uma continuidade como se nada houvesse acontecido.
No entanto, a história grega mostrava que os infortúnios, ou “males”, eram, na verdade, o que não se podia esquecer, aquilo que fica marcado, o que a historiadora Nicole Loraux denomina o “inesquecidiço”: de um lado, o esquecimento decretado ou jurado, em nome da harmonia; de outro, uma memória da “dor inesquecível” que nunca deixava os atenienses, mesmo com a força da lei.
Esta é a amnésia social que o atual governo do Brasil, encarnado pela ministra Damares Alves, está promovendo. O esquecimento como arma contra projetos de futuro, a imposição do silêncio para fazer calar o relato, esvaziar a polêmica, em nome da “paz social” – o esquecimento de criar um futuro que não reproduza o passado de infortúnios.
Quando dois líderes religiosos, o cardeal católico D. Paulo Evaristo Arns e o pastor presbiteriano Jaime Wright, apostaram suas vidas na realização do projeto Brasil Nunca Mais, a primeira Comissão da Verdade do Brasil, nos anos 80, eles sabiam muito bem do lugar da memória da aberração das torturas impostas pela ditadura. Era preciso garantir que os infortúnios e a dor experimentados por milhares de pessoas fossem inesquecíveis para que nunca mais se repetissem.
A pastora ministra bem poderia se converter a estes pares do passado, pastores de mulheres, de famílias e de direitos humanos, quando ecoaram a frase: “Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.
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