Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Cura gay, LGBTs, kardecismo e as interpretações equivocadas

A real doutrina espírita repudia qualquer tipo de preconceito e discriminação LGBTfóbica

Parada Gay (Foto: Marcelo Casal Jr./ABr)
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“Questão 202: Quando errante, que prefere o Espírito;

encarnar no corpo de um homem, ou no de uma mulher? 

Isso pouco lhe importa.

O que o guia na escolha são as provas por que haja de passar.”

Allan Kardec, O Livro dos Espíritos

Na mesma semana em que o presidente Jair Bolsonaro voltou a atacar a comunidade LGTB+ e desrespeitar as mulheres (“o Brasil não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay. Temos famílias” e “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”), obtivemos uma importante vitória no Supremo Tribunal Federal.

A ministra Cármen Lúcia suspendeu o andamento de uma ação no Distrito Federal que autorizava a terapia de reversão sexual, a chamada “cura gay”, atendendo ao pedido do Conselho Federal de Psicologia, que entrou no Supremo contra a decisão do juiz da 14ª Vara Cível em Brasília, que autorizou psicólogos a realizar terapias do tipo. Uma resolução do conselho impede que psicólogos colaborem “com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”.

O Brasil é um dos países que mais mata LGBTs no mundo. A cada 28 horas, um LGBT+ é assassinado e o discurso do presidente e os entusiastas da “cura gay”, contribuem para essa triste estatística nacional.

Acovardada diante dos retrocessos sociais e das violações dos direitos humanos, boa parte da comunidade espírita – que ousou debater temas como células-tronco, fertilização in vitro, divórcio, adoção, trazendo boas contribuições doutrinárias e científicas para o debate – fez uma aliança com os setores mais retrógrados e conservadores do cristianismo.

Alguns figurões espíritas, inclusive, são entusiastas dos discursos de Bolsonaro.

Nos últimos tempos, uma espécie de pacto perverso do silêncio, em que os neopentecostais que estão no poder não “mexem” com os espiritas (queimar terreiro de umbanda/candomblé, “ta ok!, pois eles nem são espíritas mesmo.”) e, em contrapartida, a comunidade espirita não enfrenta, sequer fala, sobre violência de gênero, LGBTfobia, Escola sem Partido e a maior Fake News de todos os tempos, a tal ideologia de gênero.

Menino em corpo de menina

Desde muito cedo frequentei a evangelização infantil, semelhante ao catecismo dos católicos ou à escola dominical dos protestantes. Nela, a transmissão do conhecimento espírita baseava-se na moral evangélica pregada por Jesus, apontado pelos espíritos superiores, que trabalharam na codificação (revelação espírita), como modelo de perfeição para toda a humanidade.

Ainda criança, durante uma dessas aulas de evangelização infantil, a evangelizadora, responsável pela turma, tentando explicar por que eu era diferente dos outros meninos – mais delicado, mais meigo – disse que eu era uma menina em um corpo de menino. Imaginem.

Se hoje há muito tabu em torno das questões LGBTs e religiões, em meados da década de 1990 quase não se falava a respeito. Sem nenhuma habilidade, foi o jeito que ela encontrou para que os outros meninos me deixassem em paz.

 

Cresci e, embora cercado de muito amor e afeto, inclusive e principalmente no ambiente familiar, vi reverberar essas explicações para as homossexualidades.

A soma é sempre a mesma (Foto: Pixabay)

Segundo Jorge Andréa, um psiquiatra tão famoso quanto controverso no meio espírita, a falta de sintonia entre o ser e o querer ser, ou entre o que se é e o que se pensa ser, transforma o homossexual, masculino ou feminino, num ser frustrado, atormentado por ilusões e anseios de consumação às vezes impossível e que o debilitam moralmente, abrindo porta larga a graves obsessões (obsessão é a influenciação negativa de um espírito desencarnado sobre um indivíduo).

O Espírito Emmanuel, em sua obra “Vida e Sexo”, psicografada por Chico Xavier, relata que quase sempre aqueles que chegam no além-túmulo, sexualmente desequilibrados, depois de longas perturbações, renascem no mundo tolerando moléstias insidiosas, ou em condição homossexual, amargando pesadas provas como consequência dos excessos que cometeram no passado.

Percebam como esse discurso espírita, parecido com o discurso de culpa da maioria das religiões cristãs, é carregado de preconceito e desconhecimento.

A doutrina

A religião, a manifestação da fé, de acesso ao sagrado, tem sido um espaço negado a nós LGBT+ por não nos enquadrarmos em algumas normas impostas pela sociedade hétero-cis-normativa.

Em determinados grupos, para poder ter aceitação e continuidade no compartilhamento do espaço religioso, muitos LGBT+ tendem a assumir identidades, comportamentos e posturas não condizentes com seu modo de ser, potencializando o surgimento de quadros de adoecimento mental, como transtornos psicológicos (quadros depressivos, doenças autoimunes) e até mesmo a morte (assassinatos ou suicídios).

Guilherme Boulos foi um dos que reagiram à frase de Bolsonaro sobre o “turismo gay”:

Não há, em todos os escritos de Kardec, uma linha sequer contra os LGBTs. Se o fazem em nome do espiritismo, fazem baseados em suas próprias convicções, suas crenças e suas leituras – enviesadas – de mundo e da sociedade. E na contramão dos ensinamentos de Cristo.

A doutrina espírita repudia qualquer tipo de preconceito e discriminação LGBTfóbica, dentro ou fora das casas espíritas, utilizando-se de argumentos pseudo-religiosos ou mediúnicos para oprimir, violentar, excluir e estigmatizar.

Somos espíritos imortais, surgidos a partir de um princípio inteligente. Como o espírito é um ser individualizado, vive, cada um, as experiências necessárias à sua evolução.

Nesse sentido, cada indivíduo tem sua sexualidade e identidade de gênero, não havendo, inclusive, uma homogeneização em nenhuma identidade de gênero, nem mesmo entre as identidades cis.

Ser LGBT+ não é resgate de vidas passadas coisíssima nenhuma. Isso é fala de alguém mal intencionado.

Diante de qualquer afirmação que coloque s LGBTs como desviados, doentes ou perturbados, reflita se aquele lugar merece a sua presença.

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