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Brasil 2020: Sobre profetas, aduladores e lobos devoradores

Bolsonaro se tornou mais conhecido pelos tumultos que criou do que por suas décadas de atuação parlamentar

Foto: Isac Nóbrega/PR
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Depois de bater continência para Jair Bolsonaro na cerimônia de posse como novo ministro da Justiça, há uma semana, André Mendonça afirmou: “Presidente, vossa excelência tem sido, por 30 anos, um profeta no combate à criminalidade (…). O povo o elegeu para isso e eu serei um fiel missionário dessa mensagem”. 

Qualquer cristão que participa de uma igreja, frequenta a Escola Bíblica Dominical ou encontros de estudos bíblicos deve ter se se incomodado com tal afirmação. Bolsonaro, um profeta?! Ainda que Mendonça, um pastor presbiteriano que estudou teologia, caísse no senso comum de atribuir o termo “profeta” a pessoas que predizem o futuro, o incômodo permaneceria.

A tradição cristã ensina que profetas, em geral, são pessoas inconformadas com a realidade, que lutam pelo direito e pela justiça, especialmente das minorias sociais – nas narrativas da Bíblia, os pobres, as viúvas, os órfãos, os doentes.

Colocam-se contra exploradores dos trabalhadores da terra, contra comerciantes que falsificam pesos e medidas e o luxo com que viviam os reis, suas famílias e a corte em contraste à pobreza do povo. Assim se expõem porque declaram-se chamados por Deus para cumprir a lei do amor, da paz e da justiça. 

Em nome desse chamado, denunciam as injustiças e iniquidades das autoridades político-religiosas. Também anunciam as consequências dramáticas daquelas atitudes, não sem deixar de consolar os mais sofridos com palavras de esperança de um tempo melhor.

O que comumente se interpreta como previsões do futuro, na verdade eram leituras coerentes da realidade que os profetas faziam: se aquelas situações permanecessem, viria a destruição e a desgraça. Com isso, desagradavam às autoridades e seus apoiadores que viviam de lucrar com a injustiça. Eram acusados de conspiradores e promotores de balbúrdia, perseguidos, presos e mortos. 

Um tema permanente na denúncia, no anúncio e no consolo apregoados pelos profetas, é a paz que só acontece, dizem, quando há a justiça e o direito, com um grande não às armas que devem dar lugar a instrumentos de trabalho que geram vida (Isaías 2).

A Bíblia registra ainda sobre falsos profetas, aqueles que vivem para agradar as autoridades e as pessoas privilegiadas. Anunciam mensagens de apoio e até ganham benesses para fazê-lo. Com isso, ajudam a esconder a realidade dura e o futuro terrível. 

Os profetas não cessam de existir. Há muitos ao longo da história, homens e mulheres, que se mostram fiéis a estes princípios e chegam a perder a vida por eles, como os do passado bíblico.

Por que, então, Jair Bolsonaro foi classificado por um jurista cristão como “profeta no combate à crimininalidade” por 30 anos? Que minorias defendeu? Que injustiças denunciou? Que exploradores confrontou? Que paz ajudou a trazer para o país com justiça e direito?

O que pode responder estas perguntas são discursos e não ações. Nos 30 anos mencionados, em sete mandatos como deputado, o atual presidente da República passou por oito partidos, apresentou projetos de lei, de decretos e propostas de emenda à Constituição (PECs), mas apenas dois foram aprovados.

Viraram lei uma proposta de isenção do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) para bens de informática e uma outra que autorizava o uso da chamada “pílula do câncer” – a fosfoetanolamina sintética. Contra a criminalidade nunca levou adiante qualquer projeto.

Suas três últimas propostas foram: incluir o nome de Enéas Ferreira Carneiro, ex-deputado e fundador do extinto Partido da Reedificação da Ordem Nacional (Prona) no Livro dos Heróis da Pátria, que os civis tenham de colocar a mão sobre o peito quando da execução do Hino Nacional e castração química de estupradores. Não há, portanto, feitos públicos de Jair Bolsonaro que justifiquem que ele seja chamado “profeta no combate à criminalidade”.

Nestes 30 anos, tornou-se mais conhecido pelos tumultos que cria do que por sua atuação parlamentar. Seu nome é recordista no Congresso em representações no Conselho de Ética: quatro processos – o maior número para um deputado desde a instalação do conselho em 2001. Recebeu seis punições por causa de pronunciamentos agressivos e entrevistas polêmicas. Em todos os casos, manobrou para escapar de processo de cassação do mandato.

O que pode ser colocado em avaliação, portanto, são discursos do ex-capitão tornados públicos na forma de palavras e de gestos. Há anos apregoa que as pessoas tenham armas e matem bandidos que as ameacem (e como presidente trabalha para isto!). Fala e gesticula sobre a execução de inimigos, especialmente de pessoas ligadas à esquerda política (desde 2019, é crescente o número de assassinatos de líderes de movimentos sociais e defensores de direitos humanos). 

Inúmeras vezes Bolsonaro pregou a pena de morte, prática frontalmente contrária aos valores evangélicos, e defendeu a tortura por agentes do Estado, em especial a praticada na ditadura militar. Declarou publicamente o comandante da tortura no Doi-Codi, coronel Carlos Alberto Brilhante Ulstra, que não poupava sequer crianças, como ídolo – apesar de a tortura ser considerada no Brasil delito grave, imprescritível, não sujeito a graça e anistia, tanto no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal quanto pela Lei de Tortura, nº 9455/97. 

O atual mandatário discriminou mulheres (tendo admitido publicamente que deu “uma fraquejada” ao gerar uma filha e que estupraria a que considera inimiga, se esta fosse bonita), desclassificou pessoas negras, indígenas, nordestinas, LGBTI+ (tendo sido condenado na Justiça por estas atitudes). 

Um levantamento do último mandato do então deputado Bolsonaro mostrou que ele empregou pelo menos cinco funcionárias fantasmas nos quadros da Câmara, e que, de 2003 a 2018, lá empregou a mulher do caseiro de sua casa de praia, entre os melhores cargos, sem que ela deixasse de ser vendedora de açaí na cidade balneária. 

Com este currículo (que não inclui situações suspeitas a serem investigadas), é tarefa difícil classificar o ex-capitão como profeta ou como exemplo de líder. Ao adular o presidente da República no discurso de posse, o pastor-ministro parece se revelar, ele próprio, um falso profeta, como os do passado bíblico, ao usar referências cristãs de forma promíscua e sacripanta.

Jesus classificou este tipo de líder religioso como gente vestida de peles de ovelhas, mas que por dentro são lobos devoradores (Mateus 7.15-20). É fato que Jesus ensinou também que não devemos julgar para não sermos julgados, mas não nos esqueçamos que ele indicou: “pelos frutos os conhecereis”.

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