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A Revolta dos Malês: a história não contada

Apesar da derrota, a Revolta dos Malês influenciou muitas lutas contra a escravidão

Parte dos escravos era muçulmana
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“Surge em 25 de janeiro um novo sol de esperança. Vindos de mãe África distante, ostentada em toda fidalguia, eles estavam em Salvador, Bahia.” Assim, o Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Mocidade Alegre pedia passagem no Carnaval de 1979 e sacudia a Avenida Tiradentes com o refrão: “ô ô ô ô Alauacabá, Alauacabá ô ô ô ô!” A expressão árabe Allahu Akbar, que significa algo como “Deus é grande”, fazia alusão aos negros muçulmanos que lideraram a Revolta dos Malês no ano de 1835.

Antes do advento da Lei 10.639/2003, só mesmo as escolas de samba exaltavam os feitos e rebeliões do povo negro. Embora tão importantes na constituição histórica do Brasil, foram quase que completamente ignorados nos registros oficiais. A Revolta dos Malês, duramente reprimida pela elite branca dominante, é um grande exemplo da bravura dos escravizados na luta pela liberdade.

Ressaltou-se por muito tempo a predominância de negros islamizados entre os mentores do levante. Porém, além de africanos muçulmanos, havia também negros de origem haussá, mahi e nagô, fundamentais na organização dos primeiros terreiros de candomblé. O temor que se espalhara desde a Revolta dos Búzios, à sombra da Independência do Haiti e da Revolução Francesa, tornou a repressão contra os escravizados ainda mais cruel. Nos terreiros, já se usavam as datas do calendário católico para escamotear o culto aos orixás, uma vez que os senhores estariam ocupados com sua devoção. Era também o momento mais propício para as insurgências.

A perseguição religiosa era um dos motes da revolução, que surgiu com o ideal de libertação do povo negro e o objetivo de matar os opressores brancos e quem mais se colocasse contra, especialmente os traidores. Mais da metade da população de Salvador na época era composta por negros, mas os malês tinham um importante diferencial: sabiam ler e escrever em árabe. Entre os insurgentes estavam muitos negros de ganho, que circulavam pela cidade, levando informações e vendendo seus produtos. Muitos deles, com sua renda, puderam comprar a alforria e adquirir armas.

Do Recôncavo Baiano, de onde os primeiros calundus reorganizavam os negros em torno do culto aos orixás e ancestrais, veio boa parte do contingente de revoltosos para Salvador. O líder Ahuma havia sido preso e torturado, assim como o Alufá Pacífico Licutan. Essas agressões foram o motivo para executar os planos da rebelião.

Antes mesmo da revolta tomar corpo, uma denúncia frustrou os objetivos dos malês. Pistolas, espadas, lanças e facões não foram suficientes, mas apesar da desorganização e do contingente baixo, seguiram os negros na luta e tomaram a cidade. Foram massacrados. Os sobreviventes foram condenados à morte, submetidos aos mais desumanos castigos ou deportados para a África. “E na hora da razão, foguetes, alvorada e traição. Da revolta nada resta mais, derrota foi a outra solução”, cantava a Mocidade naquele glorioso Carnaval.

Depois disso, a repressão aos escravizados, sobretudo os de origem malê ou nagô, passou a ser ainda mais dura. Sucessivos levantes, envolvendo diversas etnias, já vinham acontecendo desde o início daquele século e mesmo no anterior. Apesar da derrota, a Revolta dos Malês influenciou muitas lutas contra a escravidão.

Luiza Mahin fez de sua casa um verdadeiro quartel general durante muitas rebeliões, em especial a Revolta dos Malês

Nesse sentido, uma liderança se destaca. Luiza Mahin fez de sua casa um verdadeiro quartel general durante muitas rebeliões, em especial a Revolta dos Malês. Tendo escapado da punição, essa grande guerreira, uma mulher de origem jeje, talvez uma princesa do antigo Dahomé, mãe do escritor e abolicionista Luís Gama, seguiu em missão revolucionária até ser presa no Rio de Janeiro e, segundo alguns historiadores, deportada para a África.

“Num lamento triste e solitário, negro pedia a Alá, seu protetor, força e coragem nessa hora que a vitória seria em seu louvor.” Assim saía aclamada da avenida a Mocidade Alegre. Num Carnaval revolucionário, clamava a liberdade do povo negro e do povo brasileiro em plena ditadura militar. O regime, que também perseguiu as escolas de samba, nem se deu conta da metáfora.

Os malês ficaram conhecidos como os negros letrados, fluentes na língua árabe, estrategistas e combativos. Talvez a grande intelectualidade da época, já que boa parte dos senhores mal sabia escrever o próprio nome. A dura repressão, as restrições, o degredo deram fim à rebelião, mas não à rebeldia. Nos “anos de chumbo”, a morte nos porões, a tortura, o exílio cravaram a mesma luta de sempre por liberdade, bem como por igualdade de oportunidades e direitos.

Os negros seguiram e seguem em suas insurgências, desafiando os poderes instituídos nos folguedos carnavalescos e nas epistemologias preservadas nos territórios de resistência, que fazem a grande revolução decolonial dos nossos tempos. Descendentes de nagôs, mahis e haussás, somos a continuidade dessa luta. Cada um com sua arma, negros e negras ainda cantarão a glória da Revolta dos Malês e contarão a verdade que a História tanto insiste em esconder.

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