Diálogos da Fé

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A crítica marxista e o cristianismo hoje

Marx não quer destruir a religião, mas sim o modo de produção capitalista que recobre com flores ilusórias

Conciliação. No encerramento do Sínodo da Amazônia, o papa pediu desculpas por ataque de fanáticos ultraconservadores. Ouvidos, os indígenas veem com bons olhos os resultados do evento em Roma. Foto: Andreas Solaro/AFP
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Ao afirmar que a religião é o reflexo invertido e idealizado da sociedade de classes, Karl Marx (1818-1883) inaugurou a sociologia da religião e abriu um campo de estudos que até hoje é objeto de debates. Acontece, porém, que por muito tempo a teoria marxista foi identificada com o pensamento de partidos comunistas e por isso é rejeitada a priori como se não fosse mais do que uma ideologia de esquerda. Ir na direção inversa e resgatar a contribuição de Marx para a sociologia da religião é, portanto, um empreendimento difícil: é preciso se desfazer da interpretação vulgar, para descobrir a pertinência desse pensamento. É o que farei neste texto, tendo em vista aplicar a hipótese de Marx ao cristianismo atual (que ele, evidentemente não conheceu).

A tarefa é complicada, porque Marx formulou uma hipótese para resolver o problema da essência da religião, mas ele próprio não chegou a desenvolver uma teoria da religião. Sua afirmação é provavelmente uma das suas frases mais conhecidas, referindo-se à religião como “ópio do povo”. Esse texto abre o prefácio à Introdução à crítica da Filosofia do Direito de Hegel, publicada quando Marx tinha 25 anos de idade. Ali ele retoma a crítica filosófica de L. Feuerbach, que vê na religião a projeção idealizada do ser humano alienado. Nas palavras de Marx, aquele filósofo entende a religião o reflexo de si mesmo na realidade fantástica do céu, onde buscava um super-homem. Por isso, ele afirma que a religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião.

O cristianismo que não tem medo da crítica marxista apresenta promete a Paz com Justiça – e não a pax romana do Império de César

Marx refuta Feuerbach porquanto sua crítica aplica-se ao homem como pessoa individual, quando o desafio é aplicar essa tese à sociedade: “Esse Estado, essa sociedade, engendram a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido”. Por essa razão, é perda de tempo lutar contra a religião como fazem os ateístas. Há que se lutar é contra o Estado e a Sociedade que produzem a “miséria real” da qual a religião é apenas uma expressão. 

Marx vai além de Feuerbach ao reconhecer que a religião não é somente alienação, mas é também uma forma de protesto contra essa sociedade opressora: “a religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo. Para melhor entender essa formulação, é bom lembrar que em meados do século 19 a burguesia podia consumir o ópio em casas especializadas. Já o povo empobrecido encontrava na religião seu consolo, como já haviam denunciado iluministas como Condorcet, que viam na religião o resultado da pregação ilusória de sacerdotes espertos. Marx não queria simplesmente suprimir a religião, mas sim que ela não impedisse os trabalhadores empobrecidos de encontrar sua verdadeira felicidade”. E para isso eles tinham que abandonar a “felicidade ilusória” dada pela religião.

Aqui reside a contribuição original de Marx: “abandonar as ilusões sobre sua condição” implica “abandonar uma condição que necessita de ilusões.” E por que uma sociedade precisa de ilusões? A busca de resposta a essa questão vai guiar todo o pensamento de Marx dali em diante. É preciso entender a religião como “flores imaginárias que enfeitam as correntes” “para libertar-se das correntes e apanhar a flor viva”. Libertado das ilusões, o homem pode “pensar, agir e organizar sua realidade como um homem desiludido que recobrou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol”. A filosofia se torna práxis: faz a crítica das ilusões, para que o ser humano se realize na sua verdade. E isso será feito pelo proletariado moderno.

Basta esta brevíssima apresentação da crítica de Marx à religião para logo reconhecermos o simplismo da crítica anticomunista, incapaz de perceber o quanto Marx vai além do iluminismo do século 18. Marx não quer destruir a religião, mas sim o modo de produção capitalista que recobre com flores ilusórias (hoje ele talvez se referisse a flores de plástico) as correntes reais que tiram a liberdade dos trabalhadores e trabalhadoras. Só encarando de frente a opressão que sofrem, os oprimidos e oprimidas se tornam capazes de libertar-se. É o que descobriu, em meados do século 20, a Teologia da Libertação.

Aqui fica claro o interesse conservador em combater a Teologia da Libertação e outras formas de Cristianismo que denunciam o capitalismo, o patriarcado, o racismo, e outras formas sociais de opressão. Esse cristianismo que não tem medo da crítica marxista apresenta Jesus Cristo como Libertador, aquele que anuncia o Reinado de Deus na História humana, que promete a Paz com Justiça – e não a pax romana do Império de César – superando assim a imagem de um Deus que habita um céu etéreo e distante, onde ele e sua corte de anjos e santos aguardam as pessoas virtuosas para dar-lhes recompensas eternas. 

De fato, atrás do embate religioso existe um embate político e bem terrenal sobre o papel da religião na denúncia das opressões e na justificação da Libertação.

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