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Os dilemas da democracia digital e os impactos das novas tecnologias

Os indivíduos passam a ser entendidos como “perfis de uso”, separados por atributos de consumo

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Em 2011 vimos eclodir um movimento que viria a desenhar um novo contorno na organização política global, a chamada “primavera árabe” abriu, sem precedentes, um largo portal nas relações entre tecnologia e sociedade. O mundo assistiu, curtiu e compartilhou o poder da tecnologia digital como meio de habilitar conexões revolucionárias.

Através de uma conta no Facebook, centenas de milhares de pessoas em países do oriente médio e norte da África puderam se conectar a um mesmo objetivo, a um mesmo sentimento de fazerem valer suas vozes, de poder protestar, de mostrar sua visão de mundo em oposição a um regime estabelecido. Um poder de mobilização social tamanho, que colocou abaixo o governo de 30 anos de Hosni Mubarak no Egito, em fevereiro de 2011. Um dos grandes feitos sociológicos desta primeira metade do século XXI, sem dúvida alguma um marco para a democracia digital.

O impacto destes movimentos reverberam desde então. Não há de se negar o quão evidente ficou para o mercado e seus “homens de negócios”, as potencialidades de agregação e estímulo social articulados pelos meios digitais. As empresas perceberam de uma vez por todas o tamanho do oceano azul em que estavam mergulhadas e que o desafio não se tratava apenas em ter um produto a ser consumido, mas em se apropriar dos meios pelos quais os produtos são consumidos. Aliás, não só os “produtos”, mas também discursos, narrativas, visões de mundo, posições políticas. O mundo dos negócios digitais nunca mais foi o mesmo.

Em paralelo às diversas mobilizações que ocorreram no mundo todo (como: Occupy Wall Street em 2011 – Washington; e as Jornadas de Junho de 2013 – Brasil), víamos o imperativo dos dados se consolidando como diretriz estratégica aos mercados digitais, estabelecendo uma nova corrida ao círculo político, cujo objetivo central passa a ser o de gerar engajamento social através de plataformas e serviços digitais para rastrear, tanto o quanto for possível, os movimentos e comportamentos de uso das pessoas em tais plataformas. Os indivíduos passam a ser entendidos como “perfis de uso”, separados por atributos de consumo, dentro de parâmetros que correspondem aos interesses de quem precisa se comunicar com um público específico.

As máquinas de vigilância.

Imagine que você carrega seu smartphone o dia todo com você. Nele você tem um aplicativo para escutar música, outro para acessar seus emails, outro para chamar táxis, outro ainda para combinar encontros românticos, sem contar os aplicativos de entrega de comida e os de redes sociais mais populares. Todos eles registram em tempo real as suas ações, suas escolhas, seus gostos, ou mesmo aquilo que você mais odeia.

Agora imagine que esse compilado de informações passa por um tratamento qualitativo nas mãos de marqueteiros e estatísticos, os quais são revendidos para um sem número de empresas e organizações que usam estas informações para direcionar, da forma mais efetiva possível, suas mensagens e conteúdos. Este processo, conhecido como microtagueamento, levou o mercado digital a um novo patamar, deu aos anunciantes uma ferramenta de propaganda jamais antes vista, de modo que ainda não se sabe ao certo medir os reais limites do que se pode fazer a partir de mecanismos de distribuição e consumo de conteúdos em plataformas digitais como: Facebook, Spotify, Tinder, Instagram, Youtube, WhatsApp, Uber, iFood, Nubank (entre tantas outras).

O fator-chave que permitiu este efeito sistêmico é a capilaridade que estas plataformas encontraram por estarem pulverizadas em milhões de smartphones ao redor do mundo, ao passo em que se tornaram máquinas de vigilância, o tempo inteiro em busca de informações sobre a maneira como você se comunica, os horários em que você pede um delivery de pizza, os principais trajetos que você percorre na semana, as notícias que você mais gosta de ler, os assuntos que te influenciam.

O impacto destas máquinas de vigilância na sociedade é evidente pelo fato de que possuem uma capacidade enorme de criar coesão social e de determinar a maneira como as pessoas se conectam com o mundo. O poder de mobilização social pelos meios digitais, anunciados pelos movimentos de primavera política, passam então a servir aos interesses e objetivos de grandes corporações, com o intuito de enviesar comportamentos de consumo, mitigar riscos financeiros, expandir mercados e aumentar lucros.

Das bolhas às redes de desinformação.

Ao mesmo passo que as plataformas e serviços digitais permitiram a emergência de novas formas de produção e consumo de informações, também criaram uma espécie de ferramenta de distopia da realidade. A repetição cotidiana de ações como: curtir uma página; compartilhar um post; se engajar em discussões; entrar em anúncios; assinar newsletters; zapear vídeos (etc); criam as condições perfeitas para a customização dos algoritmos que distribuem conteúdos nas timelines das pessoas. A resposta que os indivíduos recebem dessa customização é uma visão parcial do mundo, pois só são afetados por conteúdos que aderem aos seus gostos pessoais, criando assim o efeito que alguns especialistas chamam de “bolhas”.

Dentro das bolhas só cabe o que você acredita, só circulam mensagens que comprovam sua visão de mundo, seu viés da realidade. O grande problema é que cada bolha produz a sua própria imagem da realidade e exerce um poder de influência tão grande que é assumida como verdade pelas pessoas. Um dos efeitos colaterais deste fenômeno é a polarização de ideias que circulam na sociedade. Grupos de pessoas que disputam suas visões de mundo dentro e fora dos meios digitais, geralmente em tom conflituoso.

Este é um terreno fértil para a proliferação de redes de desinformação. Neste sentido o ​caso de Myanmar​ é um dos exemplos mais emblemáticos. Especialistas no mundo todo apontam a plataforma Facebook como co-responsável pela articulação de correntes de ódio que grupos do alto clero budista propagaram contra as minorias muçulmanas no país. Motivados pelo discurso de monges xenófobos, militares birmaneses empreenderam um genocídio do povo rohingyas, uma verdadeira limpeza étnica, ​como afirma a ONU​. Há notícia de casos similares no Sri Lanka e na Nigéria.

As redes de desinformação são também o centro das discussões sobre manipulação social em campanhas políticas em várias partes do mundo. Na Rússia, a organização Internet Research Agency, uma empresa de inteligência em tráfego de influência online, aparece em 2014 como uma das principais envolvidas na disseminação de conteúdos fraudulentos e de manipulação de fatos​, os quais colaboraram com o processo de anexação da península Criméia pelos russos. Em 2017, a empresa foi acusada por órgãos de inteligência norte-americanos de manter interesses e influência no processo eleitoral que colocou Trump no poder. O mesmo se passa com o caso Cambridge Analytica, empresa inglesa especializada em gerar perfis eleitorais a partir do rastreamento de tendências emocionais dos usuários, apontada como a grande articuladora da vitória de Trump, envolvida no escândalo de vazamento de dados brutos de cerca de 50 milhões de perfis do Facebook.

Em 2018, o processo se repete no cenário das eleições brasileiras. Por aqui, a plataforma WhatsApp se destacou como principal meio pelo qual foram montadas as mais diversas redes de desinformação. A campanha de Jair Bolsonaro foi ​acusada sistematicamente​ de fazer uso inescrupuloso de mecanismos de produção e distribuição de conteúdos falsos, através de investimentos não declarados de grandes empresários, o que segundo especialistas configura crime eleitoral e caixa dois.

Os dilemas e o futuro da democracia digital.

Certamente os dilemas que a democracia enfrenta atualmente, no mundo todo, são transpassados pela conjuntura que as tecnologias digitais são capazes de articular para a vida em sociedade contemporânea. Estamos de frente a novo um quadro de valores, que redesenham a realidade social numa velocidade altíssima e força a consolidação de um estado tecnocrático social.

O tecido social, hoje fragmentado e complexo, precisa ser reagregado por um novo conjunto ético, o qual ainda nem foi formulado. Não temos mecanismos jurídicos fortes para interpretar e julgar os escândalos, as fraudes e as redes de desinformação que proliferam ódio na sociedade. No entanto estes casos continuam a proliferar e causar sistemicamente seus efeitos. A economia dos dados rasgou de fora a fora a cortina que separava os interesses de empresas privadas dentro do jogo político mundial, abrindo caminho para que plataformas e serviços digitais apareçam como os novos atores e mediadores da democracia, em diferentes contextos políticos e comerciais, tudo em conformidade com a agenda econômica neoliberal, que dá esteio para a expansão e crescimento de que estas plataformas precisam.

Existe um grande desafio ao se propor pensar a democracia nos dias de hoje, sobretudo porque exige conhecimentos técnicos sobre a operação dos meios digitais e também sobre uma produção de inteligência a partir do comportamento social neste meios. Precisamos entrar de vez e de cabeça dentro deste circuito, afastados de todo vestígio tecnofóbico em nossas ações e pensamentos, não há tempo a perder.

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