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Coronavírus: escancaramento da realidade urbana e saídas possíveis

A dramática situação habitacional no país mostra em que medida nossa sociedade convive com a barbárie

Favela de Paraisópolis (Foto: Wikimedia Commons)
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*Por Paolo Colosso


Nos últimos anos de acirramento das políticas de austeridade com os cidadãos comuns há uma pauperização das populações urbanas. Concretamente, isso significa um  aumento de população de rua, das moradias precárias e superpovoadas. Esses fenômenos ganhavam pouca importância nos debates públicos, mas, com a pandemia de Coronavírus, essa realidade veio à tona.  As politicas mais sensatas demandam que a população fique em casa, mas muitos já se perguntam: qual casa?

A dramática situação habitacional no país mostra em que medida nossa sociedade convive com a barbárie. Aproximadamente 13 milhões de pessoas vivem em favelas. Há mais de 6 milhões de famílias sem uma moradia digna, 35 milhões de pessoas sem acesso a rede de abastecimento de água e 100 milhões – quase metade da população – não têm acesso a redes de coleta e tratamento de esgoto, cujo destino final é, frequentemente, rios, córregos, praias e lagoas. Às vezes três, quatro, até cinco famílias dividem uma unidade habitacional. Estas condições negadas à grande parcela da população são o básico do básico.

Somente em São Paulo, são cerca de 105 mil domicílios nessa situação de “coabitação familiar” e mais 47 mil com adensamento excessivo em domicílios alugados. Em favelas, onde a densidade habitacional é maior do que a média, são 830 mil domicílios. Em cortiços, 80 mil domicílios. São completamente imprevisíveis os impactos da pandemia da Covid-19 nesses espaços.  Uma política de dados com censos mais frequentes, levantamentos mais detalhados e atentos às desigualdades territoriais ajudaria muito a avançar nos diagnósticos.    

Há ainda a população de rua. No Rio de Janeiro são cerca de 14 mil, em São Paulo, estima-se mais de 20 mil.  São pessoas em extrema vulnerabilidade, que acumulam males  físicos e psicológicos diversos.  Não se sabe do Coronavírus nessas pessoas porque se tem pouca informação sobre eles. Os dados sobre as periferias e população de rua são deficitários e há certamente uma subnotificação do número de infectadas/os, isso porque são considerados cidadãos de segunda categoria e somente agora, considerados um perigo coletivo, que ganham visibilidade e atenção.

As sociedades atomizadas e rebaixadas pela inteligência privada, autocentrada em iniciativas individuais a despeito de seus respectivos entorno e coletividade, têm sofrido mais consequências com a Covid-19. Mas uma sociedade antes amesquinhada, petrificada por “time is money” e por “não existe almoço grátis”, agora se reumaniza, seja pelo medo do adoecimento generalizado, seja pela empatia com o sofrimento alheio. Descobre na dor que há bens e valores que não têm valor mercantil. Descobre no sofrimento fenômenos que nos colocam a todas e todos num destino em comum.

A pandemia nos mostra que, em determinadas situações, é impossível  “tocar  minha vida e cuidar da minha família”. Não por acaso, as comunidades e sociedades com mais vínculos e solidariedade enfrentam mais rapidamente a crise e os desafios. O vírus exige capacidade organizativa, cidadania ativa e ação coordenada.

As periferias e movimentos sociais, com cooperação de institutos, laboratórios e universidades, têm dado exemplos muito importantes sobre como rapidamente conseguem montar campanhas de arrecadação para ações prioritárias, produzir materiais de orientação e inciativas,  rodízio de mães solidárias para cuidado dos filhos que estão em casa, comitês de bairro, brigadas de saúde e mesmo hospitais em equipamentos públicos nos territórios periféricos, a fim de realizar testes e atendimento. Vem deles também planos de emergência para distribuição de água, de kits de higiene, congelamento de preços de compra pelo poder público de itens básicos à alimentação. Além disso, manutenção de merendas ou repasse dos alimentos dessas, ampliação da rede de wi-fi público e aumento do transporte coletivo para diminuir aglomeração.

E como já nos lembraram muitos nas ultimas semanas, em momentos de crise e instabilidade generalizada, o poder público – em todos os seus níveis – volta a ser o ator social fundamental. A iniciativa privada, fragmentada e reduzida a seus interesses próprios, não tem responsabilidade nem condições de dar respostas às questões que tocam a população como um todo. O mercado é uma instituição para fins e setores específicos. Por isso, em tempos de desespero e instabilidade, todos somos um pouco keynesianos intervencionistas e demandamos ações coordenadas e estratégicas que recoloquem a vida da humanidade como prioridade.

Há iniciativas interessantes de atores que até há pouco nada podíamos esperar. Aprovar a proposta de renda básica emergencial foi um sinal de civilidade do dito centrão. Cientes de que o presidente é irresponsável, inconsequente e divisionista, multiplicam-se também as propostas da sociedade. Isenções de contas de água e luz, suspensão de ordens de despejo, uso de hotéis ociosos, arquitetas e arquitetos envolvidos em projetos emergenciais de habitação social.   Universidades públicas colocando pesquisadoras/es – cujas bolsas estão sendo cortadas – para desenvolver métodos de detecção do vírus. 

Mas precisamos de mais. Precisamos de um pacto sanitário para que todas e todos possam ter o distanciamento social – total ou parcial – em condições minimamente dignas, ou seja, uma moradia salubre. Muitas boas propostas estão sendo feitas, mas é importante adicionar um desafio às autoridades: mitigar as necessidades habitacionais diversas, através do uso de imóveis ociosos devedores de IPTU. Trata-se de uma medida de reparação histórica com as populações espoliadas pela urbanização excludente e especulativa. Com o auxilio de equipes técnicas  e cooperativas, movimentos populares como a Frente de Luta por Moradia, a União Nacional por Moradia Popular e o Movimento de Trabalhadores Sem-Teto têm capacidade organizativa e de gestão para, num prazo entre 15 e 30 dias, transformar edifícios ociosos em lares para grandes contingentes. Além disso, construir por autogestão outras tantas unidades emergenciais. 

A esmagadora maioria desses imóveis ociosos é de famílias que já vivem de renda, mantêm esses edifícios parados, com dívida de IPTU e em processos litigiosos. São patrimônios esquecidos – em desacordo com a Constituição e o Estatuto da Cidade – de pessoas que, agora, também têm de se preocupar com a vida de seus anciãos e anciãs. Não se trata de benevolência, mas de pactuar a construção de saídas coletivas. Trata-se de reconstituição de uma outra ordem social. 

Também é preciso dizer que, daqui em diante, não é mais eticamente aceitável reproduzirmos o raciocínio mesquinho da politica de salvação das classes proprietárias privilegiadas e espoliação dos outros 99%, como tem sido nos últimos anos. O momento de crise desfaz todos os nexos que davam sentido para esse mundo que, antes natural, agora se torna inadmissível. De fato, não voltaremos ao normal porque o normal era o problema. A crise deve ser o momento de estruturar, desde as raízes, um outro modo de vivermos juntos nas cidades.


*É professor no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Arquiteto e urbanista, é bacharel em filosofia pela Unicamp, mestre e doutor em filosofia pela USP. Atualmente compõe a coordenação nacional do BrCidades

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