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Brumadinho: “Você não vai ser nunca mais a mesma pessoa”, diz familiar

O luto e a luta por reparação judicial do engenheiro que perdeu enteados, neto e nora na tragédia que completou cinco meses

Casa destruída pela lama de Brumadinho (Foto: AFP)
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Vagner Diniz, com a enteada, a esposa Helena Taliberti e o enteado (Foto: Rede social)

Cinco meses depois de um dos maiores desastres humanitários, ambientais e industriais do século, o engenheiro Vagner Diniz, familiar de quatro vítimas da tragédia de Brumadinho, fala sobre a luta judicial que impõe contra a mineradora Vale em busca de justiça, e sobre com tem sido lidar com a perda dos únicos dois enteados – Luiz Taliberti e Camila Taliberti – e da nora Fernanda Damian de Almeida, que estava grávida de seu primeiro neto, o Lorenzo. 

“Se torna um momento em que você expressa sua indignação toda de uma forma sem raiva, porque a raiva não vai resolver em nada. E expressa, de certa forma, com um monte de amor, porque você tem que amar essas pessoas que estão sofrendo com tudo isso”, desabafa.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista feita pela equipe da Change.org com o engenheiro. Através da plataforma, ele se mobiliza por pedido de reparação moral. 

Change.org: O senhor, juntamente com a Associação de Amigos de Brumadinho, criou um abaixo-assinado pedindo que a Vale peça desculpas e faça um memorial nas entradas principais de suas sedes e filiais, no Brasil e no mundo. O que esse memorial e pedido de desculpas representam a vocês familiares?  

Vagner Diniz: É uma primeira de uma série de petições que vamos fazer no sentido de pressionar a Vale a cumprir o seu papel como empresa que deve responsabilidade não só aos familiares das vítimas como também à sociedade. Então, essa é a primeira petição de outras que virão. Nessa primeira, nós resolvemos focar na parte mais simbólica para nós, que é o pedido de desculpas da Vale por ter cometido o crime que ela cometeu, deixando que a barragem se rompesse, matando 270 vítimas pelo menos até agora. Ela não pode esquecer desse ato que cometeu, portanto, um memorial em cada escritório da Vale, no Brasil e fora do Brasil, na entrada da sedes onde ela estiver no mundo, vai ser uma lembrança para sempre. Quem entrar na Vale e vir o memorial da Vale pedindo desculpas por aquilo que ela fez, matando as vítimas, e com a fotografia das vítimas, fará ela se lembrar para sempre que a vida vale mais que o lucro. O significado é muito grande porque a gente não quer que a Vale esqueça o que aconteceu. 

Change.org: Vocês já apresentaram esse pedido à Vale? Qual é o posicionamento da empresa? 

VD: Na quarta-feira (26/6) foi a primeira audiência que nós tivemos no Fórum de Brumadinho e foi patética a participação da Vale. Nós temos a nossa ação e aí perguntamos se a Vale aceitava o nosso pedido. A Vale disse que não aceitava. Então foi perguntado se a Vale tinha uma contraproposta, mas ela disse apenas que estava disposta a conversar e a oferecer uma quantia vultuosa como indenização, que gostaria de dialogar, reconhecendo o que aconteceu, sabendo da sua culpa e disposta a assumir a responsabilidade. E disse que queria que o processo judicial fosse interrompido por 30 dias para fazer um acordo. Mas perguntamos se ela já tinha as bases desse acordo, com quais cálculos, quais indicadores e qual seria a forma da proposta elaborada, para a gente poder avaliar e ver se valia a pena parar para estudar. Mas ela não tinha nada. Eu virei para o advogado da Vale e perguntei: “Se você não aceitou a proposta e não tem uma contraproposta com base de cálculo, o que você veio fazer aqui?”

Change.org: E quanto ao pedido de construção do memorial, o que a Vale disse? 

VD: Falou que esse assunto não foi discutido em conselho e disse que não tinha nada a falar para nós. Sobre o pedido de desculpas, também disse que esse assunto não tinha sido discutido em conselho e que não tinha autorização para falar nada sobre isso. Agora eles têm um prazo para fazer uma contestação da nossa ação. 

Change.org: O que contém a proposta de vocês? Quais são os pedidos feitos no processo judicial?

VD: A proposta que a gente fez foi de reparação moral, que para a gente é super importante. Nós queremos um memorial com os dizeres “A vida vale mais do que o lucro. Desculpem-nos por tirar-lhes a vida!” no idioma de onde estiver localizado o prédio da Vale. O segundo pleito, também de reparação moral, é que em todas as assembleias da Vale com acionistas seja feito um pedido de desculpas e 1 minuto de silêncio. Desses dois pedidos a gente não abre mão.

A terceira coisa é a parte indenizatória. O que estamos pedindo são 10 milhões de reais por vítima. Nós usamos o próprio cálculo da Vale em relatório que ela fez antes. Ela calculou que caso houvesse um rompimento de barragem com sirene [alarme que toca em caso de risco de rompimento] iriam morrer de 1 a 10 pessoas, e se houvesse sem sirene, poderiam morrer de 10 a 1.000 pessoas. Esse documento tem o cálculo de quanto a Vale gastaria com indenização. Nele, a Vale dizia que não existe legislação brasileira fixa com relação a essa norma, que alguns falam em 500 mil a 1 milhão de reais, mas que ela ou seus consultores achavam que esse valor era pouco e subiria para 2,6 milhões de dólares por vítima. Então nós não chutamos o valor que pedimos. Não temos nenhum interesse de enriquecer com as mortes dos nossos próprios filhos. Não precisamos disso. 

Change.org: Pode contar um pouco sobre como o rompimento da barragem vitimou seus familiares? 

VD: Eles estavam a passeio, vieram visitar o museu de Inhotim. Ele [Luiz Taliberti] morava na Austrália, onde trabalhava como arquiteto há bastante tempo, com uma carreira muito brilhante, meteórica. Só que não conhecia o museu, então no roteiro de férias ao Brasil, veio com essa ideia de visitar o museu. Também aconteceu que eles [seu enteado e a nora] engravidaram e aproveitaram para vir revelar o sexo do menino que chegaria. Foi uma visita de férias. E a minha filha [a enteada Camila Taliberti] que é muito grudada com o irmão queria aproveitar o máximo da vinda dele para o Brasil. Como eles são muito grudados resolveram ir juntos para Brumadinho. Estavam hospedados na pousada Nova Estância. 

Change.org: Vocês tiveram a chance de fazer um enterro digno a eles?

VD: Eles foram encontrados em dias diferentes, mas a gente teve que cremar porque não teve outro jeito. Não podia ficar esperando [a localização dos outros corpos]. Fomos obrigados a cremar, em um crematório em Contagem (MG).  

 

Change.org: A Vale anunciou que já está pagando indenização a alguns moradores de Brumadinho…

VD: Presta atenção na perversidade desse negócio. Não é um acordo entre as partes. Já é uma tabela de quanto vale cada coisa [metros quadrados de terras, móveis, animais perdidos], e o atingido tem que aderir, ele não tem chance de discutir. O valor é pegar ou largar. […] Isso é coisa para se investigar porque vai dar problema futuro, pois quando você adere a esse acordo de indenização pela terra, você é indenizado e as terras passam a pertencer à Vale. 

Me explica por que a Vale tem interesse de ficar com essa terra? De ficar com todas essas terras que foram cobertas por lama e rejeitos de minérios? Todos que estão assinando esse acordo estão passando a sua propriedade. Isso merece uma investigação grande. Eu não sei o interesse da Vale em toda aquela área que foi coberta de lama. 

Change.org: Cinco meses depois do ocorrido, como avalia o andamento das investigações? 

VD: Eu sempre acho que as investigações precisam ser muito mais ágeis no começo, porque é do começo que você tem mais evidências disponíveis. Eu sei que o Ministério Público e a polícia do Estado de Minas Gerais estão num trabalho intenso de investigação, mas eu gostaria que toda a parte de busca e apreensão tivesse sido feita logo no começo. Busca e apreensão contra todos os diretores da Vale, e aqueles outros que também foram envolvidos. Na minha opinião, como leigo, eles demoraram muito para fazer esse tipo de coisa. Inclusive, na casa no presidente que foi demitido foi feito 4 meses depois. Para quem quer realmente ter material incriminador, a justiça teria que ter sido mais rápida para a busca e apreensão e prisão preventiva dessas pessoas. Não podia ter levado tanto tempo para tomar essas medidas. 

Julgo que o Tribunal de Justiça de Brumadinho teve a coragem de mandar prender muitas pessoas de alto grau dentro da Vale, mas infelizmente as outras instâncias mandaram soltar. Com a demora, dá tempo de fazer a destruição de documentos e de discos em computadores.

Change.org: Qual é a justiça que o senhor espera para isso tudo?

VD: Pela ordem, a mais importante para todos nós é a punição dos culpados. Que esses sejam presos para responderem por essa culpa, pelo assassinato que aconteceu. Isso foi um crime e foi um crime doloso porque eles tinham noção do que estava acontecendo. Que os culpados sejam identificados e que eles sejam presos com a devida punição. Isso para a gente é o mais importante. A segunda coisa que considero mais importante é que a Vale não se esqueça do que ela fez. E para não se esquecer precisa ser atingida do ponto de vista da memória. Essa memória precisa estar em todos os cantos do mundo, por isso o memorial é importante. 

E também que seja punida economicamente. Para nós é muito importante que a punição atinja o poder econômico da Vale, tem que ser de acordo com a capacidade econômica do réu. Não pode ser de acordo com o que a vítima ganhava [de salário até a estimativa do fim da vida], pois se não quem ganha menos vai ser indenizado com menos do que quem ganha mais. A nossa proposta é que a vítima não tem preço, você não estabelece preço para a vítima, elas são todas iguais. A gente quer uma punição indenizatória que seja igual para todos. Então, como nós propusemos 10 milhões de reais, e o nosso é quase que o primeiro caso a ser julgado como ação individual, a gente espera que seja o patamar para todas as outras vítimas, que todas recebam a mesma coisa. 

Change.org: Como foram esses cinco meses que se passaram?

VD: Temos tantas coisas para falar… Passar 16 dias em Brumadinho… É um show de horror essa história. É inacreditável tudo o que você passa, e ainda mais quando você, como parente de vítima, querendo informação, é colocado no terreno do criminoso e o criminoso controla as informações. Você vai para uma área da Vale, e a Vale que controla as informações que vai passar. Isso é só o começo de uma história muito longa do que se passou lá e que ainda continua se passando. E eu fico me perguntando como que chegamos nesse ponto. Quem é que pode nos contar como é que nós chegamos a esse ponto de acontecer tudo isso que aconteceu, a ponto de morrerem 270 pessoas? Se é que não morreram mais, porque eu fico imaginando quantas famílias podem estar debaixo da lama, que são imigrantes de algum lugar e que não têm ninguém para reclamar como desaparecido, e ninguém fala disso. 

Change.org: Vocês estão se mobilizando junto com familiares de outras vítimas? Como tem sido lidar com o luto? Está sendo possível transformá-lo em luta?

VD: A gente consegue se organizar com outras pessoas, grupos e organizações internacionais. O que a gente está fazendo no momento é isso. Se torna um momento em que você expressa sua indignação toda de uma forma sem raiva, porque a raiva não vai resolver em nada. E expressa, de certa forma com um monte de amor, porque você tem que amar essas pessoas que estão sofrendo com tudo isso, uma cidade que está completamente transformada. Então a gente consegue colocar para fora a indignação, mas o luto é muito difícil. O luto é um processo em que você tem que se ressignificar, se entender como uma outra pessoa. Você não vai ser nunca mais a mesma pessoa. Tem que buscar o que você vai ser a partir de agora. É um processo bem difícil, o mais difícil. Estou nesse processo. 

Confira matéria sobre mobilizações por justiça a Brumadinho que reúnem 1 milhão de pessoas na internet.

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