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“Brasil precisou de uma morte fora para reagir ao seu próprio racismo”

Morte de Floyd provocou reação em um Brasil que frequentemente produz vítimas por causa da cor da pele; petição online tem alcance recorde

Casos Floyd e João Pedro engajam multidões. Foto: Reprodução
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A morte brutal do segurança George Floyd, asfixiado durante abordagem policial em Minneapolis, nos Estados Unidos, provocou forte reação no Brasil com protestos que lembraram aos brasileiros que é preciso mais do que não ser racista, ser antirracista. Os atos, dentro e fora das redes sociais, “importaram” e traduziram o lema “Black Lives Matter”, fazendo com que os cidadãos voltassem sua atenção às vidas negras de seu próprio país, como João Pedro, morto em operação policial no Rio de Janeiro, e Miguel, que caiu do prédio em Recife. 

A mobilização foi tão forte que, mesmo em meio a uma pandemia, levou milhares de pessoas às ruas pedindo justiça às vítimas do racismo. O efeito dos protestos, especialmente por terem ocorrido em um momento de isolamento social, também pôde ser notado no engajamento gigantesco que se formou em torno de campanhas na internet. Um único abaixo-assinado sobre o caso Floyd reuniu mais de 17 milhões de apoiadores em diversos países, tornando-se o maior da história mundial da plataforma de petições online Change.org.   

O coordenador do Fórum Permanente das Religiões de Matrizes Africanas de Brasília e Entorno (Foafro-DF) e do Projeto Oníbodê, Luiz Alves, que é uma liderança do movimento negro e afro-religioso, comenta que foi preciso uma ação externa para que os brasileiros se  “espelhassem” e entendessem a gravidade do racismo no Brasil. Alves lembra Cláudia Ferreira, arrastada por uma viatura policial em 2014, e a menina Ágatha Félix, baleada no Rio de Janeiro, no ano passado, “que perdem a vida pelo simples fato de serem negras”. 

Como reação ao episódio Floyd, nos dias seguintes também surgiram petições na internet pedindo justiça a João Pedro, que já havia sido morto há dias. O abaixo-assinado em atenção ao adolescente fuzilado dentro de casa, em operação policial no Rio de Janeiro, foi criado por um cidadão nos Estados Unidos e compartilhado pela atriz americana Viola Davis, o que, então, despertou a atenção dos brasileiros e o fez chegar a 2,8 milhões de apoiadores. 

O coordenador do Foafro-DF e articulador do grupo Defensores do Axé, formado por lideranças que apoiam e atuam contra a intolerância racial, religiosa e social, além da homofobia, acredita que a luta antirracista passa por um processo educacional. Ele ressalta que, mesmo com toda a movimentação ocasionada pelo caso George Floyd, há muitos no Brasil que ainda não se “levantaram” para dizer “não” ao racismo institucional e estrutural.

Luiz Alves, coordenador do Foafro-DF e do Projeto Oníbodê (Foto: Ògan Marmo/RENAFRO)

“Infelizmente, nós, no Brasil, fomos acostumados a não lutar contra as questões raciais, até porque nós somos um país de base escravocrata. Então, muitos trazem dentro de si ou o racismo ou o sentimento do racista e opressor, ou trazem dentro de si o sentimento daquele escravizado que não pode ir contra o seu opressor”, explica o fotojornalista. 

Alves afirma, ainda, que o racismo “deu certo” no Brasil, ou seja, se estruturou em práticas institucionalizadas na sociedade, porque fez com que, aqui, as pessoas negras não se entendessem como vítimas desse crime. “Muitas vezes a pessoa sofre esse crime, mas elas relevam. A normatização do racismo fez com que as pessoas não se voltassem contra ele”, diz, denunciando quem fala que não é racista, mas muda de calçada quando vê um negro vindo em sua direção ou persegue um negro numa loja para ver se ele não vai roubar alguma coisa.   

“Para a polícia ainda vale a máxima de que todo negro é suspeito, até que provem o contrário, mesmo que este policial seja um negro pensando que a farda o embranquece. Então, o racismo no país é também institucional”, completa o coordenador do Foafro-DF. 

O fotojornalista integra uma mobilização pela exoneração do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, acusado de comentários racistas. A ação, que também conta com a pressão de um abaixo-assinado online, reúne quase 100 mil apoiadores. Para Alves, Camargo é resultado de um “processo” formado por um governo que não olha para as minorias, em um país onde a justiça é morosa e o legislativo é composto por pessoas sem conexão com os anseios da população e que não parecem estar a serviço da nação.  

“O Sérgio Camargo, na realidade, ele é todo um processo, não é isolado. Sérgio Camargo é um ponto dentro de um quadro totalmente detonado”, comenta. 

Mais mobilização antirracista

O abaixo-assinado por justiça a Floyd foi criado por uma americana de 15 anos que, depois de engajar milhões de pessoas, se disse emocionada por saber que pôde “fazer a diferença de alguma forma”. A adolescente Kellen S. ainda relatou esperar que a sua experiência ajude mais pessoas a obter justiça e que, embora a campanha não seja a única responsável pelos resultados, os milhões que se juntaram a ela não podem ser silenciados.  

Depois de ter mobilizado uma multidão em torno do manifesto por justiça a Floyd, Kellen inspirou, ainda, a reação de uma brasileira que decidiu lançar uma petição em atenção ao caso de Miguel Otávio Santana da Silva. O menino, de 5 anos, morreu após ser deixado aos cuidados da patroa de sua mãe e cair do 9º andar do prédio onde ela mora em Recife (PE). 

“Como aconteceu com a petição do caso de Floyd, de João Pedro e tantos outros que vêm sendo discutidos, o que aconteceu com Miguel não poderia passar despercebido e logo ser esquecido”, comenta Dani Brito, de 22 anos. “Daí surgiu a vontade de criar e compartilhar esse desejo de que o caso ganhasse a visibilidade necessária”, completa a jovem, que é branca, explicando sobre o que a motivou a criar a petição e se juntar à pauta antirracista.  

Em poucos dias, por meio do abaixo-assinado online, Dani engajou mais de 2,5 milhões de pessoas, fazendo com que a causa #JustiçaPorMiguel ganhasse forte destaque nas redes sociais, mostrando que vidas negras brasileiras também importam. A petição segue aberta na plataforma Change.org, onde não para de crescer em número de apoiadores.  

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