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Piso emergencial da saúde em 2021: uma questão de vida ou morte?

Se mantidas as regras fiscais no próximo pelo governo Bolsonaro, a crise econômica e o quadro epidemiológico podem se agravar

O parlamento deveria flexibilizar as regras fiscais do país. Foto: Sayonara Moreno/Agência Brasil O parlamento deveria flexibilizar as regras fiscais do país. Foto: Sayonara Moreno/Agência Brasil
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Por Carlos Ocké, Bruno Moretti e Francisco Funcia*

Este artigo avalia a possibilidade de aprovação do piso emergencial da saúde no valor de 168,7 bilhões de reais na Lei Orçamentária Anual de 2021, reivindicação do Conselho Nacional de Saúde (CNS), encaminhada ao Congresso Nacional.

Acreditamos que, mantidas as regras fiscais no próximo ano pelo governo Bolsonaro, a crise econômica e o quadro epidemiológico podem se agravar, especialmente se considerarmos que a pandemia não tem ainda solução definitiva e seus efeitos não acabarão no final deste ano.

Em 2016 foi constituído o Novo Regime Fiscal por meio da Emenda Constitucional nº 95 – EC 95, segundo a qual a despesa primária não pode crescer acima da inflação passada por até vinte anos. Nessa regra, os investimentos públicos e os gastos sociais tendem a cair, mesmo no caso do aumento da arrecadação e da retomada do ciclo econômico, no contexto do aprofundamento da pobreza, desigualdade e desemprego na economia brasileira.

Sem efeito no ano de 2020, devido ao decreto de calamidade pública e orçamento “de guerra”, a retomada desse regime como âncora fiscal do orçamento de 2021 (conforme consta do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias 2021 da União) representa um retrocesso, uma vez que manteve o piso federal do Sistema Único de Saúde – SUS congelado.

Fora do teto de gasto na ordem de 38 bilhões de reais. Desse modo, a proposta para a saúde na Lei Orçamentária foi de 123,8 bilhões de reais em 2021, quase 40 bilhões abaixo dos valores autorizados em 2020, com previsão de 7,3 bilhões de emendas impositivas, tanto individuais quanto de bancada, por dentro do piso.

Vale dizer, se não bastassem a demanda represada este ano e a expulsão da clientela da medicina privada, essa queda das despesas do SUS em razão da EC 95 terá consequências desastrosas sobre programações específicas, por exemplo, a atenção à média e alta complexidade (especialmente a habilitação de leitos de UTI abertos pelos entes durante a pandemia), os investimentos no complexo econômico-industrial de saúde e as aquisições de insumos estratégicos, o Programa da Farmácia Popular, o Programa Mais Médicos, a atenção primária em saúde, o Programa Nacional de Imunização etc.

O parlamento deveria flexibilizar as regras fiscais do país em meio à demanda crescente por serviços públicos de saúde, permitindo ampliação de despesas essenciais nesse grave momento da vida nacional, vide o caso do auxílio emergencial, cujo fim retirará renda de 65 milhões de brasileiros ano que vem, mesmo sem a recuperação do mercado de trabalho. Afinal de contas, considerando uma situação macroeconômica nacional e internacional sui generis, não há restrições técnicas ou financeiras para mudar o regime fiscal, mas uma correlação de forças que apoia a austeridade fiscal e o rentismo, quando sabemos que os efeitos dessa política sobre o perfil de morbimortalidade da população são alarmantes em períodos de crise econômica, mesmo sem a presença de pestes. Entretanto, existem condições políticas concretas para revogar a EC 95?

Para viabilizar a aprovação do piso emergencial da saúde, uma das alternativas seria revalidar em 2020 o estado de calamidade pública, que dispensou o cumprimento da meta de resultado primário, e a Emenda Constitucional nº 106 – EC 106, que suspendeu a regra de ouro e alguns dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal e Lei de Diretrizes Orçamentárias. Outro caminho mais consistente da ótica institucional seria aprovar no parlamento a PEC 36, a qual, no curto prazo, coloca a saúde e outras políticas fora do teto de gasto, mas a partir de 2023 propõe uma nova política fiscal, que garante os direitos sociais de forma combinada com o aumento da arrecadação e a retomada do crescimento econômico.

Como já dissemos, mantidas as regras fiscais, em particular o teto do gasto, dificilmente o piso emergencial da saúde será aprovado, de modo que os partidos de oposição, o CNS e o movimento da reforma sanitária brasileira devem se mobilizar para defender essa proposta no Congresso Nacional às vésperas das eleições municipais. Paradoxalmente, a tese do ‘estado quebrado’ foi derrotada com a pandemia. Na verdade, sobram regras de gasto com autoimposição de limites à atuação do Estado.

A conjuntura exige firmeza do campo democrático, popular e socialista. Além da aprovação do piso emergencial para 2021, existe a necessidade de acesso à vacina e remédios para toda população, visando a prevenção da Covid-19 em caráter de urgência. Sobre isso, a Constituição Federal estabelece no artigo 196 que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. No caso da Covid-19, a vacinação em massa (e obrigatória) se insere tanto nesse mandamento constitucional, como na Lei n. 13.979, de 2020 (art. 3º, III, d) – e o parágrafo 4º do artigo 3º dessa lei estabelece que “as pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei”.

Portanto, do ponto de vista legal e constitucional, é crime de responsabilidade passível de impeachment ao Presidente da República a sua ação de impedir a compra de vacina chinesa em pleno estado de emergência sanitária e de calamidade pública, desautorizando publicamente o seu Ministro da Saúde na formalização de acordo para esse fim junto ao Instituto Butantã do governo do Estado de São Paulo.

A luta pela saúde se confundiu com a redemocratização do país, mas nesse momento histórico se afirma sobretudo como um movimento em defesa da vida e do SUS.

A retomada da EC 95 reduzirá significativamente os valores autorizados em 2020  (163,6 bilhões), que contou até agora com créditos extraordinários.

Carlos Ocké é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

Bruno Moretti é economista pela UFF, mestre em economia pela UFRJ, doutor e pós-doutor em sociologia pela UnB

Francisco Funcia é professor da USCS e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde (CNS)

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